A ingestão de corpo estranho é um acidente comum na prática clínica. Apesar do curso natural geralmente benigno, ela pode estar associada a um aumento da morbidade quando se manifesta com complicações, como a perfuração esofágica.1 Isso é particularmente raro, é uma situação ameaçadora à vida. Uma consequência rara de perfuração esofágica por um corpo estranho pode ser a penetração de um grande vaso. Quando ocorre, a repercussão pode ser drástica, como hemorragia grave no momento da penetração ou mais tarde, com a formação de pseudoaneurisma (PA).1,2 Neste relato, apresentamos um caso raro de perfuração do esôfago com o desenvolvimento de um PA de artéria carótida comum traumático após a ingestão de espinha de peixe.
Relato de casoUma mulher hipertensa e diabética de 71 anos foi encaminhada a um hospital de cuidados terciários com uma história de ingestão de espinha de peixe sete dias antes. Ela apresentava um leve desconforto associado a uma sensação de picada ao engolir, odinofagia e uma massa no lado esquerdo do pescoço. O exame do pescoço revelou uma massa dolorosa, avermelhada, quente e edemaciada. Embora não houvesse evidência de lesão pulsátil ou ruído durante a ausculta, o exame de imagem foi solicitado devido a seu histórico de ingestão de espinha de peixe. Os exames simples e com contraste de tomografia computadorizada (TC) revelaram a presença de um corpo estranho na região parafaríngea/peri‐hióidea esquerda associada a abscesso, caracterizado por infiltração de tecidos moles e dissecção dos músculos cervicais (fig. 1). A endoscopia rígida direta (ERD) não revelou a perfuração do esôfago nem detectou o corpo estranho.
Exames de TC com contraste que revelam a presença de um corpo estranho (seta) e gás compatível com um abscesso (pontada seta) na região parafaríngea esquerda. (A), Corte coronal de TC; (B), Fatias de TC 3D reconstruídas mostram a espinha de peixe alojada na região parafaríngea esquerda (seta).
Uma cirurgia exploratória de urgência do pescoço foi feita por incisão cervical lateral. Para acessar o esôfago, o músculo esternocleidomastóideo foi temporariamente desviado. A espinha de peixe foi removida (fig. 2A) e a área extensamente lavada com solução salina a 0,9%. Foram detectados perfuração do esôfago e PA traumático da artéria carótida comum esquerda. Depois de clampagem arterial das extremidades proximal e distal da lesão vascular, o PA foi excisado e a artéria carótida comum reparada com uma anastomose de extremidade a extremidade (fig. 2B), sem necessidade de intervenção adicional nas artérias carótidas interna e externa.
Procedimento cirúrgico. (A), No detalhe, a espinha de peixe (círculo preto) que perfurou o esôfago e causou um pseudoaneurisma na artéria carótida comum esquerda; (B), Esôfago suturado após remoção da espinha de peixe (seta) e anastomose de extremidade a extremidade da artéria carótida esquerda (pontada seta).
A perfuração do esôfago foi suturada e o tecido adjacente usado para reforçar o reparo primário (fig. 2B). O músculo esternocleidomastóideo foi dissecado nas suas inserções proximais e usado como um retalho para proteger a artéria carótida comum. Seis drenos de Penrose foram colocados na área paraesofágica esquerda e a ferida cirúrgica foi suturada. Fez‐se traqueostomia, assim como gastrostomia de Whipple, para nutrir a paciente e evitar possível deiscência da sutura. Após a cirurgia, a paciente ficou quatro dias na unidade de terapia intensiva e, em seguida, permaneceu internada por mais 15 dias. Durante esse período, uma abordagem multidisciplinar foi essencial para sua evolução satisfatória no pós‐operatório. Ela recebeu alta hospitalar sem quaisquer efeitos residuais do corpo estranho.
TC de esôfago com contraste e angiotomografia da artéria carótida comum esquerda foram feitas 37 dias após a cirurgia, na consulta de seguimento. O primeiro exame revelou um lúmen transesofágico desobstruído, sem extravasamento de agente de contraste. O último apresentou uma artéria carótida comum esquerda patente com calibre normal e presença de calcificações no bulbo carotídeo. Não havia evidência de fistula e a paciente apresentou evolução satisfatória, sem queixas.
DiscussãoNa presença de um corpo estranho no espaço carotídeo, após a ingestão e perfuração do esôfago, existe o risco potencial de erosão da artéria carótida comum durante a migração do objeto pela garganta, o que pode causar hemorragia maciça, PA ou fístula aortoesofágica. Portanto, seu diagnóstico e remoção devem ser urgentes.1,2 Aneurismas extracranianos das artérias carótidas e/ou PA podem ser assintomáticos ou se apresentar como uma massa cervical pulsante.3
Quatro estudos retrospectivos foram relevantes ao analisar aneurismas da artéria carótida comum extracranianos e PA. Eles revelaram que as principais causas de PA eram aterosclerose, iatrogênicas após procedimentos carotídeos, trauma e outras, tais como luéticas e degenerativas.4–7 Três desses estudos revelaram que o trauma foi a causa menos comum, quando comparado com arteriosclerose e após procedimento na carótida.4–6 No estudo em que o trauma teve uma taxa semelhante à endarterectomia carotídea anterior, todos os PA traumáticos envolveram lesões contusas no pescoço.7 Além disso, em nenhum desses estudos espinhas de peixes eram a causa de PA de carótida. Assim, os dados coletados corroboraram a singularidade do presente relato, a ingestão de corpo estranho e o trauma não contuso ou iatrogenia foram o mecanismo subjacente de um PA de artéria carótida comum.
Ao analisar etiologias traumáticas, traumas contusos e penetrantes no pescoço correspondem às principais causas de PA.7 Essa condição pode ocorrer devido à fraqueza da parede vascular causada pela ação de componentes externos. O presente estudo descreveu um caso raro em que um corpo estranho perfurou o esôfago, migrou através do tecido adjacente e penetrou na artéria carótida comum esquerda, resultou em PA. Tais circunstâncias tinham sido previamente relatadas apenas em alguns outros estudos.1–3,8–10
As opções de tratamento para PA de artéria carótida comum incluem monitoração clínica, tratamento cirúrgico, intervenções endovasculares ou terapia combinada. A intervenção cirúrgica é geralmente indicada quando um aneurisma da artéria carótida comum é detectado principalmente devido ao seu potencial para complicações graves.5–7 Há cinco opções de tratamento cirúrgico: clipagem de aneurisma; ressecção e anastomose de extremidade a extremidade; ressecção com um enxerto de interposição; bypass extracraniano a intracraniano; e ligadura da artéria carótida. A ligadura do vaso pode ser feita como medida salvadora da vida,4 embora essa técnica esteja em desuso, por sua elevada morbidade.3 A abordagem endovascular tem sido extensamente estudada e é atualmente aceita como opção no tratamento de aneurismas da artéria carótida.5 No entanto, embora o tratamento endovascular tenha, gradualmente, conquistado reconhecimento, a familiaridade com o procedimento cirúrgico aberto, a natureza de emergência do presente caso e a presença de infecção excluíram essa estratégia como opção primária. A abordagem endovascular pode ser uma opção como medida temporária antes da cirurgia; mas teria deixado a perfuração do esôfago sem tratamento e, portanto, aumentaria o risco de mediastinite e infecção da endoprótese. Portanto, apesar do crescente papel da terapia endovascular no tratamento da doença vascular, o tratamento cirúrgico aberto continua a ser a abordagem mais adequada para aneurismas da artéria carótida extracraniana.2,7
A abordagem multidisciplinar ao tratamento de um PA de artéria carótida comum devido à ingestão de corpo estranho é essencial para um desfecho satisfatório para o paciente. Embora o cirurgião vascular possa tratar adequadamente a doença, outros tratamentos, tais como confecção de um retalho de músculo para proteger a artéria carótida manipulada e drenagem do abscesso, podem ser feitos por um cirurgião de cabeça e pescoço ou um otorrinolaringologista.2 Além disso, o planejamento pré e pós‐cirúrgico também é responsável por resultados adequados. A TC e TC com contraste são importantes, pois auxiliam na detecção do corpo estranho e fornecem informações sobre as estruturas acometidas, o que será importante para o cirurgião.2 A imagem vascular com contraste possibilita a avaliação da patência da artéria carótida comum e também a detecção da presença de uma possível via fistulosa. No presente estudo, a paciente foi bem cuidada por uma equipe composta por enfermeiro, nutricionista, terapeuta ocupacional, psicólogo e assistente social, o que foi fundamental para o resultado positivo.
ConclusãoUm caso raro de perfuração do esôfago devido à ingestão de espinha de peixe seguida pela migração do corpo estranho através dos tecidos moles do pescoço e a formação de um PA de artéria carótida comum esquerda foi descrito neste relato. O desenlace desse problema pode ser drástico; portanto, é essencial manter um elevado índice de suspeita, para a obtenção de um diagnóstico rápido e evitar ou tratar possíveis desfechos adequadamente. Além disso, devido ao número relativamente pequeno desses tipos de casos relatados na literatura, é difícil produzir orientações claras sobre como essa condição deve ser controlada.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Como citar este artigo: Fontes EB, Vidal MG, Rode J, da Silva RB, Kahlbeck A. Foreign body ingestion as a cause of a common carotid artery pseudoaneurysm. Braz J Otorhinolaryngol. 2019;85:534–7.
A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.