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Vol. 88. Núm. 2.
Páginas 168-173 (Março - Abril 2022)
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Vol. 88. Núm. 2.
Páginas 168-173 (Março - Abril 2022)
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Neoplasias malignas da cavidade oral e orofaringe tratadas no Brasil: o que revelam os registros hospitalares de câncer?
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Sheilla de Oliveira Fariaa,
Autor para correspondência
shefaria@hotmail.com

Autor para correspondência.
, Murilo César do Nascimentob, Marco Aurélio Vamondes Kulcsarc
a Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina (FMUSP), Departamento de Medicina Preventiva, São Paulo, SP, Brasil
b Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Escola de Enfermagem, Alfenas, MG, Brasil
c Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, Hospital das Clínicas (HCFMUSP), Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
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Tabela 1. Atendimentos ao câncer de cavidade oral e orofaringe registrados no Brasil, 2007‐2016
Tabela 2. Características demográficas dos indivíduos com câncer de cavidade oral e orofaringe atendidos, Brasil, 2007‐2016
Tabela 3. Características clínicas e assistenciais dos indivíduos com câncer de cavidade oral e orofaringe, Brasil, 2007‐2016
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Resumo
Introdução

O câncer de cabeça e pescoço impacta a carga global de doenças, representa importante causa de morbimortalidade no Brasil e no mundo.

Objetivo

Conhecer e descrever a compleição clínica, epidemiológica e assistencial dos atendimentos a pacientes com câncer de cavidade oral e orofaringe registrados no Brasil, diagnosticados de 2007 a 2016.

Método

Estudo transversal, feito a partir de dados secundários de base hospitalar, por meio de técnica de documentação indireta.

Resultados

Houve 52.799 registros hospitalares de câncer de cavidade oral e 34.516 casos de câncer de orofaringe no período considerado. Predominaram pacientes do sexo masculino, da faixa etária de 50‐59 anos, predominantemente branca, e de baixo nível de escolaridade. Ao longo do período houve redução expressiva do histórico positivo de consumo de bebida alcoólica e tabaco, exceto para bebida alcoólica no câncer de cavidade oral. A maioria dos pacientes foi diagnosticada em estágio avançado da doença (III ou IV). A maior parte dos pacientes de câncer de cavidade oral apresentava‐se sem evidência da doença, enquanto que grande parte dos pacientes com câncer de orofaringe evoluiu a óbito. O primeiro tratamento mais frequente oferecido aos pacientes com câncer de cavidade oral foi cirurgia, enquanto para os pacientes com câncer de orofaringe foi a quimioradioterapia.

Conclusão

Apesar de se observar, de maneira geral, redução dos registros do consumo de bebida e tabaco, o aumento do número de atendimentos, o diagnóstico tardio predominante e o baixo nível de escolaridade dos pacientes apontam para a necessidade da educação em saúde, de prevenção primária e do diagnóstico precoce do câncer de cavidade oral e orofaringe.

Palavras‐chave:
Epidemiologia
Neoplasias de cabeça e pescoço
Pesquisa sobre serviços de saúde
Institutos de câncer
Base de dados
Texto Completo
Introdução

De acordo com dados do Globocan, estima‐se que mais de 1,2 milhão de casos novos de câncer de cabeça e pescoço serão diagnosticados e cerca de 680 mil mortes serão registradas no mundo em 2040.1 No Brasil, segundo estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca), para cada ano do triênio 2020‐2022, estão previstos 22.840 novos casos de câncer de cavidade oral, lábio, orofaringe e laringe.2 Estima‐se que, dentre todas as neoplasias de cabeça e pescoço, os cânceres de boca e orofaringe sejam os mais frequentes.1,2

A epidemiologia do câncer de cabeça e pescoço (CCP) mudou nos últimos anos, à medida que CCP relacionados ao tabagismo diminuem em incidência, enquanto o câncer relacionado ao papilomavírus humano (HPV) aumenta. De qualquer forma, o tabagismo e o etilismo ainda são considerados os grandes responsáveis pelo alto índice de casos de CCP.3,4 Outros fatores associados aos CCP como alimentação (pobre em frutas e vegetais), má higiene bucal e o papel do microbioma oral (em especial das bactérias Fusobacterium nucleatum e Porphyromonas gingivalis) têm sido investigados.5–7

O padrão de tratamento de CCP é baseado principalmente em considerações anatômicas e estágio TNM (tumor, nódulos linfáticos, metástase).8 Cerca de 66% dos casos são diagnosticados em estágios avançados (III ou IV) e, portanto, implicam tratamentos mais agressivos, caros e com repercussão negativa tanto na qualidade de vida quanto na sobrevida quando comparados a estádios precoces.9

No Brasil, os dados nacionais de notificação das neoplasias malignas são centralizados no integrador RHC (Registro Hospitalar de Câncer), que reúne aproximadamente 25 sítios de informações com dados provenientes de 260 hospitais brasileiros e tem a finalidade de contribuir para a melhoria da assistência prestada ao paciente e para o planejamento intrainstitucional.10

O conhecimento da configuração clínica, epidemiológica e assistencial dos cânceres de cavidade oral e orofaringe é imprescindível para o entendimento de seus aspectos etiológicos e assistenciais, bem como para a proposta de ações de saúde pública que possam contribuir para a detecção precoce e prevenção. Diante do exposto, o objetivo do presente estudo foi identificar o perfil clínico‐epidemiológico e assistencial dos atendimentos do câncer de cavidade oral e orofaringe atendidos no Brasil na última década.

Método

Estudo transversal, feito a partir de dados secundários de base hospitalar. Os dados de pacientes diagnosticados entre 2007 e 2016, registrados no banco de dados do sistema de registro hospitalar de câncer (SISRHC),11 foram consultados de forma circunstancial, por meio de técnica de documentação indireta.

Foram incluídos registros hospitalares de pacientes com as seguintes neoplasias malignas de cabeça e pescoço, de acordo com a classificação internacional de doenças para oncologia (CID‐O), terceira edição (OMS, 2005):12 cavidade oral (C00 – lábio; C02 – outras partes não específicas da língua; C03 – gengiva; C04 – assoalho da boca; C05 – palato e C06 – outras partes não específicas da boca) e orofaringe (C01 – base da língua; C09 – amígdalas e C10 – orofaringe). Os dados foram acessados em novembro de 2019.

Foram explorados os dados dos atendimentos a casos novos de câncer de cavidade oral e orofaringe diagnosticados por ano, estratificados e apresentados por meio de frequências das seguintes variáveis: demográficas (sexo, faixa etária), clínicas/epidemiológicas/assistenciais (estadiamento, primeiro tratamento recebido no hospital, estágio da doença no fim do tratamento e tabagismo e/ou etilismo).

Os dados foram exportados para o programa microsoft excel e analisados com o suporte do software Stata (v. 13). Para a análise de tendência foi usado o modelo de regressão linear. Para toda análise foi considerada confiança de 95%, teve‐se como referência para significância estatística o valor de p <0,05.

Em atenção às diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas que envolvm seres humanos, das quais trata a resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012,13 esclarece‐se que, por se tratar de um estudo com dados secundários, de domínio público, obtidos em um sistema de informação disponível para livre acesso, não foi necessária submissão de proposta a comitê de ética e pesquisa.

Resultados

Foram identificados registros hospitalares de 52.799 atendimentos a casos de câncer de cavidade oral e 34.516 casos de câncer de orofaringe diagnosticados entre 2007 a 2016. O número total de casos novos atendidos para o câncer de cavidade oral e orofaringe, detalhados por ano, estão dispostos na figura 1.

Figura 1.

Números de casos novos de câncer de cavidade oral e orofaringe registrados no Brasil, 2007‐2016.

(0,17MB).

Entre os diferentes tipos de câncer de cavidade oral, os atendimentos ao câncer de língua foram os que apresentaram maior número de registros no período (32,1%), enquanto o câncer de orofaringe (C10) (48,1%) foram os mais frequentemente tratados dentre os tipos de câncer de orofaringe. O número de atendimentos por câncer registrados, segundo o recorte temporal de interesse e conforme a localização primária do tumor, está disposto na tabela 1. Vale ressaltar que, 65,8% dos casos de orofaringe (C10), foram registrados como C10.9 (SOE – Sem Outras Especificações).

Tabela 1.

Atendimentos ao câncer de cavidade oral e orofaringe registrados no Brasil, 2007‐2016

  2007  2008  2009  2010  2011  2012  2013  2014  2015  2016  Total n (%) 
Cavidade oral  4567  4811  5062  5514  5685  5436  5825  5755  5599  4545  52799 
Lábio  546  558  583  614  619  566  651  612  578  478  5805 (11.0) 
Língua  1421  1478  1536  1722  1796  1781  1882  1940  1831  1563  16950 (32.1) 
Gengiva  185  186  178  222  204  209  195  230  228  184  2021 (3.8) 
Assoalho da boca  695  759  879  871  942  816  942  867  872  683  8326 (15.8) 
Palato  784  891  867  967  1042  1000  1015  1006  997  804  9373 (17.8) 
Outras partes da boca não especificadas  936  939  1019  1118  1082  1064  1140  1100  1093  833  10324 (19.6) 
Orofaringe  2747  2914  3253  3471  3694  3609  3748  3837  3731  3512  34516 
Base de língua  859  970  1034  1080  1206  1109  1193  1179  1144  1092  10866 (31.5) 
Amigdalas (Tonsila palatina)  593  693  648  689  704  765  741  768  744  714  7059 (20.4) 
Orofaringe  1295  1251  1571  1702  1784  1735  1814  1890  1843  1706  16591 (48.1) 

Em relação às características sociodemográficas, grande proporção dos pacientes era do sexo masculino, da faixa de 50‐59 anos, predominantemente branca, e de baixo nível de escolaridade (Ensino Fundamental incompleto) (tabela 2).

Tabela 2.

Características demográficas dos indivíduos com câncer de cavidade oral e orofaringe atendidos, Brasil, 2007‐2016

Variáveis  Cavidade oral (n=52,799)Orofaringe (n=34,516)
 
Sexo
Masculino  39218  74,3  29096  84,3 
Feminino  13581  32,7  5420  15,7 
Faixa etáriaa
<40  2531  4,8  1146  3,3 
40‐49  7728  14,6  6008  17,4 
50‐59  16022  30,3  12663  36,7 
60‐69  13760  26,1  9080  26,3 
≥ 70  12750  24,2  5615  16,3 
Etnia/cor da peleb
Amarela  309  0,9  192  0,8 
Branca  16658  46,9  10703  45,9 
Indígena  47  0,1  24  0,1 
Parda  16119  45,4  10619  45,5 
Preta  2389  6,7  1804  7,7 
Escolaridade
Nenhuma/analfabeto  6288  15,7  3213  12,2 
Ensino Fundamental incompleto  19763  49,3  13395  51,0 
Ensino Fundamental completo  7784  19,4  5377  20,5 
Ensino Médio complete  4647  11,6  3176  12,1 
Nível superior completo/incompleto  1569  3,9  1090  4,2 
a

Variável classificada como “Sem informação” em 12 (< 0,1%) dos casos.

b

Variável classificada como “Sem informação” em 28451 (32,6%) dos casos.

c Variável classificada como “Sem informação” em 21013 (24,1%) dos casos.

O histórico de consumo de bebida alcoólica ou tabaco ao longo da última década está disposto na figura 2.

Figura 2.

Histórico de consumo de bebida alcoólica dos indivíduos com câncer de cavidade oral (p=0,05) e orofaringe (p=0,03) e de tabaco dos indivíduos com câncer de cavidade oral (p=0,02) e orofaringe (p <0,01) por ano, Brasil, 2007‐2016. a Variável “consumo de bebida alcoólica” classificada como “Sem informação” em 41.955 (48,0%) dos casos; b Variável “consumo de Tabaco” classificada como “Sem informação” em 39340 (45,0%) dos casos.

(0,11MB).

Muitos pacientes foram diagnosticados em estágio avançado da doença (III ou IV) (tabela 3). Com relação ao estado da doença no fim do primeiro tratamento, parte expressiva dos pacientes com câncer de cavidade oral apresentava‐se sem evidência da doença ou em remissão completa (30,0%), enquanto que para pacientes com câncer de orofaringe, percentual considerável evoluiu para o óbito (24,8%). O primeiro tratamento recebido mais frequente entre os pacientes de câncer de cavidade oral foi cirurgia (24,0%), enquanto para os pacientes com câncer de orofaringe foi a quimioradioterapia (29,2%).

Tabela 3.

Características clínicas e assistenciais dos indivíduos com câncer de cavidade oral e orofaringe, Brasil, 2007‐2016

Variáveis  Cavidade oral (n=52,799)Orofaringe (n=34,516)
 
Estadiamentoa
I/II  10751  30.6  2761  12.0 
III/IV  24408  69,4  20205  88,0 
Doença no fim do primeiro tratamentob
Doença em progressão  2883  13,9  2145  15,9 
Doença estável  4829  23,3  3333  24,8 
Fora de possibilidade terapêutica  772  3,7  536  4,0 
Óbito  4283  20,7  3476  25,8 
Remissão parcial  1744  8,4  1283  9,5 
Sem evidência da doença/Remissão completa  6222  30,0  2676  19,9 
Primeiro tratamento recebidoc
Cirurgia  12539  24,0  2520  7,4 
Cirurgia + QT  1174  2,2  814  2,4 
Cirurgia + RT  4369  8,3  1132  3,3 
Cirurgia + QT + RT  3736  7,1  2360  6,9 
QT  3665  7,0  3999  11,7 
QT + RT  8215  15,7  9991  29,2 
RT  8383  16,0  6497  19,0 
Outros  1599  3,1  1284  3,8 
Nenhum  8660  16,5  5603  16,4 
Razão para não tratard
Abandono do tratamento  564  7,3  389  6,8 
Complicações do tratamento  26  0,3  32  0,6 
Doença avançada  1396  18,1  1137  20,0 
Óbito  2004  26,0  1885  33,1 
Outras  2465  32,0  1574  27,6 
Recusa do tratamento  296  3,8  154  2,7 
Tratamento realizado fora  962  12,5  525  9,2 
a

Variável classificada como “Sem informação” em 16.729 (19,1%) dos casos e como “Não se aplica” em 12461 (14,5%) dos casos.

b

Variável classificada como “Sem informação” em 39.703 (45,5%) dos casos.

c

Variável classificada como “Sem informação” em 775 (0,9%) dos casos.

d

Variável classificada como “Sem informação” em 6.885 (7,9%) dos casos e como “Não se aplica” em 67021 (76,7%) dos casos.

Discussão

Em relação ao perfil epidemiológico, clínico e assistencial dos atendimentos a pacientes com câncer de cavidade oral e orofaringe no Brasil, pôde‐se notar um aumento discreto e progressivo no número de casos registrados no período de interesse, principalmente dos casos de orofaringe, o que converge para as estimativas do INCA.2 Segundo o Surveillance, Epidemiology and End Results Program (SEER), nos Estados Unidos também se observou que a incidência de câncer de boca e orofaringe tem aumentado em média 0,6% ao ano na última década, a incidência de câncer de orofaringe e de amigdala aumentou em média 2,9% ao ano.14 De modo geral, o perfil epidemiológico dos pacientes demonstrou semelhança com o estudo anterior sobre a epidemiologia do câncer de cabeça e pescoço no Brasil, que abrangeu o período de 2000 a 2008.15

O maior percentual de indivíduos com baixo nível de escolaridade corrobora dados de uma revisão sistemática que reportou, apesar da falta de uniformidade na definição dos determinantes sociais da saúde entre os estudos avaliados, que a educação, entre outros determinantes, tem forte associação com o câncer de boca.16 Além disso, vale ressaltar que determinantes socioeconômicos podem influenciar comportamentos e estilos de vida, como aqueles relacionados a fatores de risco de câncer, como tabagismo, etilismo e má alimentação.17

O fato de a maioria dos casos continuar a ser diagnosticada em estágios clínicos avançados é preocupante, pode comprometer a taxa de cura e/ou sobrevida desses pacientes. Se considerarmos que esse achado corresponde ao mesmo de quase duas décadas, acredita‐se que pode ter havido dificuldades quanto à promoção das medidas/estratégias de prevenção e diagnóstico precoce.15 Tal situação pode implicar maior custo para o sistema de saúde, uma vez que a maioria dos tumores T3 e T4 requer terapêutica multimodal. Além disso, o índice de sobrevida e a qualidade de vida desses pacientes geralmente é são muito inferiores aos de doentes com estádios precoces.9

O diagnóstico tardio reforça a necessidade de ações que visem à educação da população e a necessidade de treinamento de profissionais de saúde da atenção básica para a detecção de lesões malignas em estágios mais precoces. O rastreamento do câncer de lábio e cavidade oral, por exemplo, não é recomendado como estratégia de detecção precoce. No entanto, a capacitação com o treinamento desde o agente de saúde e, em especial, de cirurgiões dentistas das unidades básicas de saúde seria uma forma oportuna para contemplar essa demanda populacional.2,18

Ao analisar a tendência do histórico de consumo de bebida alcoólica e tabaco ao longo dos últimos anos, observa‐se uma redução, principalmente com relação ao tabaco. Um estudo caso‐controle reportou que as frações de CCP atribuíveis ao tabagismo foram mais expressivas do que para o consumo de álcool.17 Dados do estudo INHANCE mostram que, em comparação com os não fumantes, qualquer quantidade de cigarro aumenta o risco de CCP (0–3 cigarros por dia: OR=1,52; 95% IC 1,21–1,90) e o uso de 5 a 10 cigarros diários mais do que o dobra o risco de desenvolver um CCP (OR geral=2,6; 95% IC 2,00–3,40).19

De acordo com Wünsch Filho et al., a redução do tabagismo na população brasileira poderá ter influência na redução da morbidade e mortalidade por CCP no futuro.20 Já a prevalência do consumo do álcool ainda apresenta tendência ascendente.21 Se dialogarmos com tais resultados, os dados ora apresentados nesse trabalho, que aparentemente sinalizam para uma tendência na redução do histórico de uso de álcool e tabaco, não necessariamente representam um contraponto aos indicadores descritos na literatura. Fator importante que impacta no retrato do consumo dessas substâncias de risco no país guarda relação com características do próprio registro hospitalar de câncer brasileiro, ao passo que alguns campos (como as variáveis referentes ao alcoolismo e ao tabagismo) não se constituem de preenchimento obrigatório na tela do SisRHC.

Assim, a principal limitação desse trabalho está relacionada ao uso de dados secundários oriundos de um sistema de informação extremamente importante, porém não isento de incompletude quanto às variáveis de interesse (sem informação). Apesar do amadurecimento dos registros de câncer ao longo dos anos, outro desafio importante é o aprimoramento deles, torná‐los aptos a fornecer dados completos sobre a epidemiologia e permitir fazer uma analise mais precisa do comportamento dos casos de câncer no Brasil. O fato de a maioria dos casos de orofaringe (C10) ser registrada como C10.9 (SOE – Sem Outras Especificações), por exemplo, deveria despertar nos diversos serviços de atendimento ao câncer a necessidade de melhor classificar a localização primária detalhada desse tipo de câncer.

Além disso, dados etiológicos relevantes sobre o CCP, como o HPV status, não são disponíveis. Há na literatura estudo de caso‐controle que demonstrou associação entre a infecção por HPV e o risco de CCP, independentemente do uso de tabaco e álcool, por exemplo.9 Ainda, sabe‐se que pacientes HPV positivos respondem melhor à quimioradioterapia. Entretanto, casos ainda são poucos frequentes no Brasil.

Ressalta‐se que os dados do SisRHC não representam a totalidade de novos casos de câncer diagnosticados no país, e sim a distribuição dos casos atendidos/registrados. Dessa maneira, não é possível calcular, a partir deles, estimativas e projeções para as medidas de frequência dos cânceres de cavidade oral e orofaringe, como o é feito nos estudos de base populacional.

A abordagem da epidemiologia descritiva abordada neste trabalho possibilitou a discussão de alguns dados referentes à epidemiologia do câncer de cavidade oral e orofaringe no Brasil, de 2007 a 2016. A epidemiologia descritiva é fundamental para identificar as tendências ascendentes nas taxas de incidência e as distribuições segundo atributos pessoais, permite caracterizar o comportamento da doença, evidencia suas alterações ao longo do tempo e indica novas estratégias de controle. Nesse sentido, o presente trabalho contribui para que políticas públicas de saúde sejam definidas, a fim de nortear um melhor atendimento a pacientes tão complexos.

Conclusão

Tomados em conjunto, os resultados da caracterização clínica, epidemiológica e assistencial alcançada possibilitam concluir que houve no período de interesse um incremento discreto e progressivo na distribuição de casos novos dos cânceres estudados, uma distribuição regular praticamente estacionária dos atendimentos a tais pacientes oncológicos, bem como uma tendência à redução nos registros referentes ao histórico de consumo de bebida e tabaco.

Apesar de não representar variações da incidência e da prevalência dos cânceres de cavidade oral e orofaringe na população brasileira, o relativo aumento do número de atendimentos para tais causas na década estudada pode ser compreendido como um importante sinalizador de demanda para os serviços de alta densidade tecnológica e um retrato parcial da capacidade instalada para a prestação de assistência oncológica no país.

O diagnóstico tardio predominante e o baixo nível de escolaridade dos pacientes observados apontam para a importância de fortalecer as ações estratégicas de educação em saúde e de prevenção primaria com vistas à garantia do diagnóstico precoce das neoplasias malignas de cavidade oral e orofaringe.

Fontes de financiamento

O presente trabalho foi feito com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Código de Financiamento 001.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

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Como citar este artigo: Faria SO, Nascimento MC, Kulcsar MA. Malignant neoplasms of the oral cavity and oropharynx treated in Brazil: what do hospital cancer records reveal? Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:168–73.

A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.

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