A síndrome de Turner é uma alteração frequente e genética que acomete indivíduos do sexo feminino e abrange grande variabilidade fenotípica. A literatura científica sugere uma relação entre perda auditiva e síndrome de Turner, porém ainda é um tema controverso.
ObjetivoRelacionar a alteração citogenética com o perfil audiométrico de indivíduos com síndrome de Turner.
MétodoEstudo transversal, com amostra de conveniência, de base hospitalar. Foram incluídas pacientes com diagnóstico de síndrome de Turner e excluídas as com dificuldade para compreender a audiometria e/ou outras síndromes associadas. As participantes foram submetidas à audiometria tonal.
ResultadosDas 65 pacientes incluídas, 36,9% apresentaram monossomia do cromossomo X e 63,0%, outras alterações. Com relação à audiometria, 64,6% apresentaram limiares dentro da normalidade e 35,3% alteração auditiva. Dessas, 30,4% apresentaram perda auditiva híbrida, 26,0% alteração em 6 e/ou 8 KHz; 17,3% perda auditiva condutiva, 13,0% perda neurossensorial e 13,0% perda auditiva mista. Observamos que o grau leve foi o mais frequente. Não foi observada associação estatiscamente significativa entre o tipo citogenético da síndrome de Turner e a presença ou não perda auditiva, ou com o tipo e grau de perda auditiva.
ConclusãoA alteração citogenética na síndrome de Turner não teve associação com o perfil audiométrico, o qual apresentou variabilidade quanto ao tipo e grau da perda auditiva.
A síndrome de Turner (ST) é uma anormalidade genética, frequente e complexa que afeta indivíduos do sexo feminino e caracteriza‐se citogeneticamente pela monossomia do cromossomo sexual (45X) em mosaicismo ou não, ou por alterações estruturais. Eventualmente, o cromossomo Y ou parte do mesmo podem ser encontrados.1,2
A ST cursa com ampla variedade de alterações anatômicas e funcionais. O quadro clínico é variável, são mais comuns a baixa estatura, imaturidade do desenvolvimento sexual, pescoço curto, anomalias renais e cardiovasculares, além de face triangular, nariz pequeno, retrognatismo, palato ogival, mandíbula pequena e má‐oclusão dentária e algumas alterações visuais (ptose, estrabismo, catarata, nistagmo e miopia), baixa implantação de cabelo na nuca e pectusexcavatum.3
Considerando a grande variabilidade fenotípica e as diversas comorbidades que podem estar associadas a ST, alguns estudos sugerem uma relação entre perda auditiva e ST.4–6 Um dos fatores que podem influenciar o tipo de perda auditiva é o tipo do cariótipo do indivíduo com ST.7
A presença de otite média crônica recorrente, que contribui para perda auditiva condutiva, pode ser explicada pela presença do palato em ogiva na ST, característica que facilita a ocorrência de distúrbios respiratórios e dessa forma dificulta a eliminação das secreções, o que pode resultar em infecções na orelha média.3
Alterações de orelha média foram encontradas em uma percentagem maior em crianças com ST do que na população de crianças saudáveis, mesmo que seja uma alteração comumente diagnosticada na infância. Os autores apontam que mudanças anatômicas congênitas da tuba auditiva, que podem estar presentes na ST, podem ser uma das causas mais prováveis.5 Alterações de orelha média encontradas em mulheres adultas com ST podem ser devido à falta de tratamento adequado na infância, mesmo sendo esperado que esse tipo de alteração tenha sido superada nesta fase, devido ao crescimento das estruturas da orelha média.4
Além de alterações de orelha média encontradas na ST, também são relatadas outras alterações auditivas; uma delas é a presbiacusia precoce, devido à deficiência de estrogênio. Perda auditiva neurossensorial progressiva também pode ser observada, geralmente começando pelas frequências médias e com o avanço da idade pode atingir as frequências agudas. Esse tipo de perda está relacionado não só com a idade, mas também com a precocidade da ocorrência em indivíduos que apresentam monossomia do que com outros tipos de alterações cromossômicas.6
Sabendo‐se da relevância que o sentido da audição apresenta na vida dos indivíduos e do importante papel nos aspectos da aprendizagem, da comunicação oral e desenvolvimento da linguagem,8 se tornam imprescindívelis estudos sobre a integridade e funcionalidade do sistema auditivo na ST, já que algumas síndromes genéticas, como Pendred, Alport, Wanderburg, a perda auditiva neurosenssorial é reconhecida como uma de suas características.9,10 Entretanto, na ST, os variados padrões auditivos encontrados e suas possíveis causas permanecem, ainda, um tema controverso, assim como a influência do padrão citogenético com a perda auditiva.11
O objetivo deste estudo foi relacionar o tipo citogenético com o perfil audiométrico de pacientes com ST.
MétodoFoi feito estudo descritivo e transversal, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG/UFRJ), sob o n° 1864085. Todos os indivíduos que aceitaram participar assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e o termo de assentimento quando necessário.
Amostra de conveniência, de base hospitalar, constituída por indivíduos com diagnóstico citogenético de ST de 9 a 39 anos, provenientes dos Serviços de Genética Médica e de Endocrinologia Pediátrica do IPPMG/UFRJ e do Serviço de Endocrinologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HCFF/UFRJ).
A seleção dos partipantes foi feita por meio da consulta aos prontuários e anamnese subsequente. Adotamos como critérios de inclusão ter apresentado diagnóstico para ST com alterações numéricas ou estruturais no cariótipo (cultura de linfócitos). Os critérios de exclusão adotados foram apresentar coexistência de outra condição genética (outra síndrome associada) e/ou impossibilidade de feitura da audiometria por não compreensão das tarefas solicitadas.
As avaliações auditivas foram feitas na Divisão de Audiologia do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), pertencente ao Ministério da Educação. Os procedimentos foram feitos por três audiologistas capacitadas, em um único atendimento. Foi usado audiômetro da marca Interacoustics, modelo AD 229b, calibrado anualmente, de acordo com a ISO 1994.
Foram obtidos os resultados do estudo citogenético e as participantes foram agrupadas nos seguintes tipos: a) Tipo 1: monossomia do cromossomo X; b) Tipo 2: outras alterações citogenéticas, como alterações estruturais e mosaicismo.
Foi feita uma inspeção cuidadosa do meato acústico externo, através de um otoscópio, para visualização da membrana timpânica e possível identificação de indivíduos com presença de corpo estranho e/ou rolha de cera, o que impediria a obtenção correta dos limiares tonais.12 Esses indivíduos foram encaminhados para o otorrinolaringologista para a retirada do corpo estranho e/ou rolha de cera e voltaram para a avaliação.
Em seguida, foi feita a audiometria tonal com a finalidade de determinar os limiares de audibilidade. O procedimento foi feito dentro de uma cabina acústica, e com o uso de fones. Foram pesquisados valores tonais por via aérea nas frequências de 250‐8000Hz e de via óssea nas frequências de 500‐4000Hz. Os limiares foram obtidos através da técnica descendente‐ascendente.12
Considerou‐se audiometria normal, presença de limiares de audibilidade até 25dB em todas as frequências.13 Dessa forma, foram criados dois grupos distintos, o Grupo 1 (G1) constituído por indivíduos com limiares auditivos normais, e o Grupo 2 (G2) formado por indivíduos com alteração dos limiares auditivos.
Com o objetivo de designar a perda auditiva quanto ao tipo, foram usadas as seguintes classificações: condutiva, mista; neurossensorial, alteração em 6 e/ou 8 KHz.14 Para os casos de diferenças entre as orelhas direita e esquerda, quanto ao tipo de perda auditiva (por exemplo: orelha direita neurossensorial e esquerda alteração em 6 e 8 KHZ), foi criado para este estudo um grupo denominado de perdas auditivas híbridas, uma vez que queríamos classificar o tipo de perda por indivíduo, e não por orelha.
Com o objetivo de designar perda auditiva quanto ao grau, foi usada a classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS, 1997)13 através da média tonal obtida pelos limiares da via aérea entre as frequências de 500Hz, 1000Hz, 2000Hz e 4000Hz. Para os casos de perda auditiva assimétrica em relação ao grau, foi considerada a orelha que apresentou o pior grau de perda auditiva.
Foi feita a análise descritiva com distribuição de frequências e medidas de tendência central e de dispersão em nível exploratório, foram usados o teste qui‐quadrado com a finalidade de avaliar a associação existente entre as variáveis: normalidade e alteração auditiva (G1 e G2) com as alterações citogenéticas (Tipo 1 e Tipo 2 respectivamente) e o teste exato de Fisher para calcular a probabilidade de associação entre as variáveis tipo e grau da perda com tipo de cariótipo. A amostra segue distribuição normal, segundo o teste de Shapiro‐Wilk. Foi usada a análise de variância (Anova) para estudar a influência da idade nos grupos G1 e G2. A significância estatística considerada no estudo foi de p <0,05.
ResultadosInicialmente foram atendidas 70 pacientes, com média de 19,4 anos (± 7,84). Foram excluídas quatro pacientes por não conseguirem compreender as tarefas propostas nos testes; e uma paciente por apresentar comorbidade genética (Trissomia do 13).
Assim foram incluídas 65 participantes; o mínimo de idade foi de 9 anos e o máximo de 39 anos; a média de idade foi de 19,1 anos (± 7,1). Vinte e quatro (36,9%) apresentaram monossomia do cromossomo X (Tipo 1) e 41 (63,0%) outras alterações (Tipo 2).
Ao analisar as respostas da audiometria tonal, encontramos 42 participantes (64,61%) que apresentaram limiares dentro dos padrões de normalidade em todas as frequências avaliadas (G1) e 23 (35,3%) que apresentaram algum tipo de perda auditiva (G2). A figura 1 mostra a frequência dos tipos de perda auditiva encontradas.
Em relação ao grau da perda auditiva, 60% da amostra apresentaram grau leve, 20% grau moderado e 20% grau severo. Não foi possível identificar o grau da perda em 13 participantes, pois essas apresentaram perda auditiva do tipo híbrida ou alteração em 6 e 8 KHz.
Não foi encontradada associação estatiscamente significativa entre o tipo citogenético (Tipo 1 e Tipo 2) e o resultado da audiometria (G1 e G2) e entre o o tipo citogenético (Tipo 1 e Tipo 2) e o tipo e o grau da perda auditiva (tabela 1).
Distribuição dos pacientes por alteração citogenética e tipo e grau de perda auditiva
Tipo de perda | Tipo 1 | Tipo 2 | p‐valor |
---|---|---|---|
Híbridas | 1 (14%) | 6 (86%) | 0,62a |
Alt em 6 e/ou 8 KHz | 3 (50%) | 3 (50%) | 0,27a |
Condutiva | 1 (25%) | 3 (75%) | 1a |
Mista | 1 (33%) | 2 (67%) | 1a |
Neurosensorial | 0 (0%) | 3 (100%) | 0,53a |
Grau de perda | Tipo 1 | Tipo 2 | p‐valor |
---|---|---|---|
Leve | 1 (17%) | 5 (83%) | 1a |
Moderado | 1 (50%) | 1 (50%) | 0,46a |
Severo | 0 (0%) | 2 (100%) | 1a |
Tipo 1, monossomia X; Tipo 2, outras alterações; Alt, alteração.
Com o objetivo de analisar a influência do fator idade no G1 e no G2, usou‐se a análise de variância (Anova) entre os grupos, no qual o p‐valor obtido foi de 0,07, portanto não significativo estatisticamente (tabela 2). Entretanto, pode ser observado na figura 2 que os indivíduos do G2 apresentaram média da idade (21,5 anos) mais elevada do que os do G1 (17,7 anos).
DiscussãoNos estudos que associam perda auditiva e ST, geralmente a amostra constitui‐se majoritariamente por indivíduos com 45X, esse tipo citogenético é encontrado em 50% dos casos com ST15 e é apontado como o mais suscetível a apresentar perda auditiva.5,7,16 Entretanto, o resultado do presente estudo diferiu desses estudos, o que pode ter sido em função da amostra, na qual outros tipos de alterações citogenéticas foram mais frequentes.
Sabe‐se que a perda auditiva pode estar associada a ST.3–5 No presente estudo, ao ser analisada a distribuição dos pacientes com ST segundo o perfil audiométrico (fig. 1), foi observada uma grande variedade de resultados. Verificaram‐se tipos de perdas diferentes em cada uma das orelhas de um mesmo indivíduo (em nosso estudo denominado perdas híbridas). Embora esse achado não seja muito comum na prática clínica, foi o mais frequente na amostra estudada. Não encontramos na literatura referência que possa justificar a razão da alta ocorrência de perdas auditivas com diferentes tipos no mesmo indivíduo. Nesse grupo com ST, o segundo tipo de perda mais observada foi a alteração auditiva em 6 e/ou 8 KHz, seguida de perda condutiva (17,3%), mista (13,0%) e neurossensorial (13,0%). Outros estudos apontam achados diversificados quanto ao tipo de perda auditiva na população com ST.1,5,17 Sugerimos ser de fato heterogênea a perda auditiva na ST e relacionada com os tipos de amostras avaliadas. Em estudos na ST cujo tamanho amostral variou de 51 a 119 indivíduos, da idade pré‐escolar até a idade adulta (73 anos), foram identificadas como as mais frequentes a perda neurossensorial1,5 e a condutiva.15 A variabilidade nos resultados audiométricos pode estar associada aos diferentes grupos etários estudados e a diferentes critérios de classificação de perda auditiva empregados nesses estudos.
A perda auditiva de grau leve foi a mais frequente e não foi identificada perda de grau profundo. Esses resultados estão de acordo com um estudo similar, que avaliou 52 indivíduos com ST, entre 7 e 37 anos, e foi observado que os participantes com perda auditiva apresentaram em maior frequência perda auditiva leve, moderada e moderadamente severa, em ordem decrescente, e nenhum apresentou grau profundo.17 Acreditamos que esse achado possa estar relacionado com o fato de a amostra ter idade inferior a 40 anos, considerando‐se que as perdas auditivas na ST podem ter caráter progressivo18 e que os indivíduos com ST necessitam de acompanhamento audiológico regularmente, pois novos problemas auditivos podem surgir ao longo da vida.19
Como limitação deste estudo podemos apontar o número pequeno de participantes. Entretanto, estudos com amostras maiores ainda mostram resultados diversos,1,5,16 apesar de ser reconhecida a associação entre perda da audição e ST.3–5,20
É incontestável a importância da audiometria tonal no diagnóstico da perda auditiva. Apesar
de existirem diversos exames audiológicos atualmente, a audiometria tonal ainda é considerada a etapa mais relevante da avaliação audiológica, por meio da qual é possível detectar a presença, o tipo e o grau da perda auditiva.21 Adicionalmente, de acordo com recomendações internacionais, a audiometria deve ser feita a cada cinco anos nos indivíduos adultos com ST e a cada três anos nas crianças, independentemente do tipo de cariótipo ou do resultado da avaliação auditiva inicial.22 Por essa razão, ressaltamos a importância do monitoramento audiológico regular em indivíduos com ST, com o objetivo de fornecer tratamento adequado e minimizar o comprometimento em longo prazo, além da identificação precoce dessa comorbidade.
ConclusãoO tipo de alteração citogenética não influenciou no indivíduo apresentar ou não perda auditiva, no tipo e grau da perda. O perfil audiométrico na ST foi variado, a função auditiva normal foi a mais frequente. Entre as alterações auditivas encontradas houve grande variabilidade quanto ao tipo e grau da perda auditiva.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Como citar este artigo: Bazilio MM, Santos AF, Almeida FG, Frota S, Guimarães M, Ribeiro MG. Association between cytogenetic alteration and the audiometric profile of individuals with Turner Syndrome. Braz J Otorhinolaryngol. 2021;87:728–32.
A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.