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Vol. 86. Núm. 5.
Páginas 632-638 (Setembro - Outubro 2020)
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Vol. 86. Núm. 5.
Páginas 632-638 (Setembro - Outubro 2020)
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The close relationship between sudden loss of smell and Covid‐19
A estreita relação entre perda súbita de olfato e Covid‐19
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Lucia Joffilya,
Autor para correspondência
luciajoffily@gmail.com

Autor para correspondência.
, Aluan Ungierowiczb, Andrea Goldwasser Davidc, Bruna Melod, César Leandro Terra Britoe, Luciane Mellob,f, Priscilla de Souza Campos dos Santosb, Rogério Pezatog
a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
b Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
c Hospital Regional de São José dos Campos (HRSJC), Serviço de Otorrinolaringologia, São José dos Campos, SP, Brasil
d Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto (HMNSL), Serviço Craniomaxilofacial, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
e Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Serviço de Otorrinolaringologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
f Hospital Federal da Lagoa (HFL), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
g Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Escola Paulista de Medicina (EPM), Departamento de Otorrinolaringologia, São Paulo, SP, Brasil
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Figuras (1)
Tabelas (3)
Tabela 1. Variáveis clínicas e demográficas associadas ao teste de Covid‐19 na perda súbita do olfato
Tabela 2. Seguimento da perda de olfato no grupo testado para Covid ‐19
Tabela 3. Perda do olfato mostrou alto valor preditivo positivo (VPP) para o diagnóstico de Covid‐19
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Abstract
Introduction

The real number of Covid‐19 cases may be underestimated since several countries have difficulty offering laboratory tests for all the population. Therefore, finding a symptom with a high predictive value would help in diagnostic and isolation strategies.

Objective

To correlate the sudden loss of the sense of smell in the context of the Covid‐19 pandemic with results of diagnostic tests for Covid‐19.

Methods

This is a cross‐sectional observational study. An online questionnaire was digitally addressed to 725 outpatients in Brazil who reported partial or total sudden loss of the sense of smell from March to April 2020.

Results

Total or partial sudden loss of the sense of smell showed high positive predictive value for Covid‐19 diagnosis, during the Covid‐19 pandemic in Brazil (88.8%). There were no differences between groups tested positive and negative in regard to demographic and clinical characteristics such as presence of allergy, rhinitis, neither to olfactory recovery time.

Conclusion

The identification of sudden loss of the sense of smell during Covid‐19 pandemic may serve as a sentinel symptom and may be a warning to establish measures to prevent the transmission of the disease.

Keywords:
Covid‐19
SARS‐CoV‐2
Anosmia
Hyposmia
Resumo
Introdução

O número real de casos Covid‐19 pode estar subestimado, pois vários países têm dificuldade em oferecer exames laboratoriais para toda a população. Portanto, encontrar um sintoma com alto valor preditivo ajudaria nas estratégias de diagnóstico e isolamento.

Objetivo

Correlacionar a perda súbita do olfato no contexto da pandemia da Covid‐19 com os resultados dos testes de diagnóstico da Covid‐19.

Método

Trata‐se de um estudo observacional transversal. Um questionário on‐line foi enviado digitalmente a 725 voluntários que apresentaram perda súbita parcial ou total do sentido de olfato de março a abril de 2020 no Brasil.

Resultados

A perda súbita total ou parcial do sentido do olfato apresentou alto valor preditivo positivo para o diagnóstico de Covid‐19, durante a pandemia de Covid‐19 no Brasil (88,8%). Não houve diferenças entre os grupos positivos e negativos em relação às características demográficas e clínicas, como presença de alergia, rinite e tempo de recuperação olfativa.

Conclusão

A identificação de perda súbita do olfato durante a pandemia de Covid‐19 pode servir como sintoma sentinela e pode ser um alerta para estabelecer medidas para impedir a transmissão da doença.

Palavras‐chave:
Covid‐19
SARS‐CoV‐2
Anosmia
Hiposmia
Texto Completo
Introdução

Em 31 de dezembro de 2019, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China (CDC‐China) e as autoridades de saúde da cidade de Wuhan relataram um surto de pneumonia de causa desconhecida. Em janeiro de 2020, o CDC‐China identificou um novo coronavírus nas amostras do trato respiratório inferior desses pacientes e liberou a sequência do seu genoma. A Organização Mundial de Saúde (OMS) designou a doença causada pelo novo coronavírus de Covid‐19 e sua síndrome respiratória aguda grave, SARS‐CoV‐2.1

O primeiro caso na América Latina foi confirmado em 26 de fevereiro em São Paulo e, desde então, o Brasil registrou o maior número de casos na América Latina.2 Em 20 de abril de 2020, havia 40.581 pacientes confirmados, 2.575 óbitos e uma taxa de letalidade de 6,3%. A região Sudeste apresenta mais de 50% dos casos.3

O coronavírus pertence a uma família de vírus que se manifesta através de diferentes apresentações clínicas e foi responsável por importantes epidemias. Este novo coronavírus (SARS‐CoV‐2) não é o primeiro a infectar humanos. As espécies identificadas dessa família são variadas e duas se destacam como responsáveis por epidemias com grande impacto na saúde global: a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS‐CoV) e a síndrome respiratória aguda grave (SARS‐CoV).4–6

A Covid‐19 também tem mostrado um grande impacto na saúde devido ao seu alto grau de transmissibilidade, levou a uma rápida dispersão mundial. O novo coronavírus tem a capacidade de ser transmitido por contato entre pessoas através de gotículas respiratórias, aerossóis ou vômitos contaminados.7 Os principais sintomas identificados até o momento são: febre, tosse, fadiga, mialgia, artralgia e dispneia, a insuficiência respiratória é a principal complicação.4 Sintomas não respiratórios, como palpitações, dor abdominal, diarreia, dor de cabeça, tontura, podem preceder os sintomas respiratórios ou aparecer isoladamente.1 Ela raramente mostra envolvimento significativo das vias aéreas superiores (VAS), mas não é o caso das vias aéreas inferiores (VAI).5 Sabe‐se que o vírus tem como células‐alvo aquelas que expressam receptores da enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2). Os receptores de ECA2 são expressos predominantemente por células epiteliais do pulmão, intestino, rim, coração e dos vasos sanguíneos, o pulmão é o principal órgão afetado pela SARS‐CoV‐2.8 Entretanto, essa não parece ser a única via de entrada do vírus nas células, pois o fígado é bastante afetado, embora não tenha muitos receptores de ECA2.9

O cérebro humano também se mostra como um sítio de expressão dos receptores de ECA2, o que parece justificar o neurotropismo do SARS‐COV‐2 pelo sistema nervoso central (SNC). Estudos corroboram a hipótese do tropismo do coronavírus pelo neuroepitélio olfativo e manifestações neurológicas em casos confirmados da doença. 10–12

O aumento nos casos de perda súbita do olfato (PSO) observados nos cuidados médicos durante a pandemia de Covid‐19 motivou o presente estudo. A importância fisiológica da olfação na identificação de fatores ambientais e ameaças potenciais é tão relevante que a perda do olfato está relacionada à redução da expectativa de vida, mesmo em indivíduos sem diagnóstico de doença neurodegenerativa, como Alzheimer e Parkinson.13 O distúrbio olfativo é um problema já descrito na maioria dos países afetados pela Covid‐19.14

A relação entre distúrbios olfativos e infecções virais de vias aéreas superiores (VAS) já está bem estabelecida.15 Estudos anteriores mostram a existência de disfunção olfativa pós‐viral na presença de rinovírus humano, parainfluenza, coronavírus e vírus Epstein‐Barr.16 Segundo estudos feitos nos EUA, no Japão e na Europa sobre as etiologias de hiposmia ou anosmia, a causa pós‐viral corresponde de 18% a 45% dos casos.4 Nos casos de SARS‐Cov‐2, entretanto, a queixa de anosmia geralmente não é acompanhada de obstrução nasal, um sintoma comum em outras infecções das VAS.4,5,11,17–20

Em países em desenvolvimento como o Brasil, o teste de Covid‐19 é restrito a uma pequena porção de pacientes devido à falta de testes para toda a população. Assim, casos leves e até moderados não obtêm evidências laboratoriais.

Além da escassez de testes no início desta pandemia, os testes disponíveis até o momento apresentam baixa sensibilidade. A sensibilidade é dinâmica e depende da fase da doença em que o paciente está. A detecção viral através de swab de nasofaringe por RT‐PCR tem uma sensibilidade de 63%.21 A sorologia tem uma sensibilidade inferior a 40% na primeira semana de sintomas.22

A identificação de um sintoma altamente sugestivo de Covid‐19 em uma região epidêmica com a aplicação de um questionário pode ajudar no diagnóstico precoce e permitir a implantação de medidas de isolamento social, obtém‐se assim maior controle sobre a transmissão da doença.23 Alguns países como a França, Alemanha e Inglaterra já adotaram essas medidas quando das queixas de anosmia.24–26

O objetivo deste trabalho é correlacionar a PSO no contexto da epidemia de Covid‐19 com os resultados dos testes diagnósticos para SARS‐CoV‐2.

Material e métodoDesenho do estudo e coleta de dados

Estudo observacional transversal com indivíduos que apresentaram PSO parcial ou total a partir de março de 2020 no Brasil.

Avaliamos as informações coletadas em uma pesquisa de dados produzida no Google Forms de pacientes entre 18 e 90 anos, com queixa de PSO durante a epidemia de Covid‐19. O questionário foi enviado a pacientes ambulatoriais em grupos de mídia social, triagem de consultórios, clínicas médicas e hospitais públicos e privados.

Entre os itens a serem respondidos, havia perguntas sobre questões demográficas, sintomas associados, comorbidades e se o paciente havia sido testado ou não a Covid‐19. A metodologia usada para testar os casos foi a RT‐PCR e/ou sorologia. Durante quase todo o período da pesquisa, a RT‐PCR foi o único teste disponível no Brasil; portanto, na maioria dos casos fez‐se esse tipo de teste para a Covid‐19.

Todos os indivíduos incluídos no estudo receberam e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) por meio eletrônico. Os resultados publicados aqui se referem aos dados coletados nas primeiras semanas do estudo, com base em questionários, preenchidos de 26 de março a 11 de abril de 2020, cobriram‐se 17 dias. O questionário foi respondido pelos próprios pacientes participantes do estudo e devolvido aos pesquisadores com todas as perguntas necessariamente respondidas.

Para o seguimento do estudo, outro questionário foi enviado por e‐mail a cada um dos participantes, duas semanas após o recebimento do primeiro questionário, para uma nova coleta de dados sobre sintomas e resultados dos testes para a Covid‐19.

Foram excluídos os pacientes que não assinaram o termo de consentimento, aqueles com menos de 18 anos ou mais de 90 anos e aqueles que responderam ao questionário, mas que não referiram ter PSO.

Análise estatística

Os dados gerados no estudo foram analisados com os programas SPSS 18 (IBM Corporation, NY, EUA) e R Core Team (2020), uma linguagem e ambiente para computação estatística, R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria (https://www.R‐project.org/). Para os dados basais, foram usados média e desvio‐padrão (DP) para dados normalmente distribuídos e mediana e intervalo para dados não normalmente distribuídos. As variáveis categóricas foram expressas em números e porcentagens; o teste qui‐quadrado de Pearson e o teste exato de Fisher foram usados para avaliar diferenças entre os grupos em duas variáveis categóricas. O teste U de Mann‐Whitney foi aplicado para avaliar as diferenças estatísticas entre os grupos de pacientes; valores de p < 0,05 foram considerados significativos.

ResultadosCaracterísticas demográficas e clínicas

Foram incluídos na análise 725 pacientes com PSO que responderam o questionário. Dos participantes, 546 (75,3%) não puderam fazer teste para Covid‐19 (grupo não testado). Dos 179 (24,7%) que foram testados para Covid‐19, 159 (88,8%) tiveram resultados positivos e 20 (11,2%) tiveram resultados negativos (fig. 1). As características clínicas e demográficas são mostradas na tabela 1. Quando avaliada a idade nos grupos testados, não houve diferença estatística entre eles (p = 0,59). Não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos positivo e negativo em relação à presença de PSO parcial ou total (p = 0,33), nem em relação à presença de outros sintomas como rinorreia (p = 0,38), falta de ar (p = 0,22), tosse (p = 0,95), dor de garganta (p = 1), obstrução nasal (p = 1) e dor de cabeça (p = 0,68). Dor de cabeça foi o sintoma mais prevalente entre os pacientes, independentemente dos grupos testados (73% no teste de Covid‐19 positivo e 80% no teste de Covid‐19 negativo).

Figura 1.

Frequência do teste de Covid‐19 na perda súbita do olfato.

(0,04MB).
Tabela 1.

Variáveis clínicas e demográficas associadas ao teste de Covid‐19 na perda súbita do olfato

CaracterísticasTeste de Covid‐19p‐valor
Negativo  Positivo 
N° (%) n = 20  N° (%) n = 159 
Idade      0,59b 
Até 39 anos  14 (70,0)  112 (70,4)   
40 a 59 anos  6 (30,0)  37 (23,3)   
60 anos ou mais  0 (0,0)  10 (6,3)   
Sexo      0,74a 
Masculino  5 (25,0)  50 (31,4)   
Feminino  15 (75,0)  109 (68,6)   
Perda do olfato      0,33b 
Perda total  15 (75,0)  134 (84,3)   
Perda parcial  5 (25,0)  25 (15,7)   
Mudança no sentido do paladar      0,38b 
Não  3 (15,0)  12 (7,5)   
Sim  17 (85,0)  147 (92,5)   
Mudança no apetite      0,40b 
Não  7 (35,0)  62 (39,0)   
Sim. Aumento do apetite  1 (5,0)  2 (1,3)   
Sim. Diminuição do apetite  12 (60,0)  95 (59,7)   
Uso contínuo de esteroides nasais      0,47b 
Não  17 (85,0)  142 (89,3)   
Sim  3 (15,0)  17 (10,7)   
Tabagismo      0,08b 
Nunca fumou  18 (90,0)  135 (84,9)   
Ex‐fumante  0 (0,0)  19 (11,9)   
Fumante  2 (10,0)  5 (3,1)   
Dor de cabeça      0,68a 
Não  4 (20,0)  43 (27,0)   
Sim  16 (80,0)  116 (73,0)   
Tosse      0,95a 
Não  8 (40,0)  58 (36,5)   
Sim  12 (60,0)  101 (63,5)   
Dor de garganta      1,00b 
Não  14 (70,0)  107 (67,3)   
Sim  6 (30,0)  52 (32,7)   
Falta de ar      0,22b 
Não  14 (70,0)  131 (82,4)   
Sim  6 (30,0)  28 (17,6)   
Coriza      0,38a 
Não  15 (75,0)  99 (62,3)   
Sim  5 (25,0)  60 (37,7)   
Obstrução nasal      1,00b 
Não  16 (80,0)  126 (79,2)   
Sim  4 (20,0)  33 (20,8)   
a

Teste aui‐quadrado de Pearson.

b

Teste exato de Fischer.

Entre os pacientes testados, a alteração no paladar foi altamente referida nos dois grupos: 17 (85%) no grupo negativo e 147 (92,5%) no grupo positivo, embora não tenha havido diferença estatística entre os grupos testados (p = 0,38). Não houve diferença estatística entre os grupos negativo e positivo em relação à alteração do apetite (p = 0,40), e cerca da metade dos pacientes apresentou perda de apetite em ambos os grupos: 12 (60%) e 95 (59,7%), respectivamente.

O uso contínuo de esteroides nasais não mostrou diferença no surgimento de PSO, fosse parcial ou total nos dois grupos analisados que testaram positivo (p = 0,70) e negativo (p = 1,00) para Covid‐19.

Seguimento de duas semanas

Foi solicitado a todos os participantes testados para SARS‐CoV‐2 (n = 179) que respondessem um novo questionário duas semanas após o primeiro, a fim de avaliar a melhoria do olfato. No início da pesquisa, 149 (83,2%) deles tinham PSO total, 134 (84,3%) do grupo Covid‐19 positivo e 15 (75%) do grupo Covid‐19 negativo. Após duas semanas, apenas 88 (55,3%) persistiram com o sintoma de perda do olfato (parcial ou total) no grupo Covid‐19, ou seja, houve uma taxa de recuperação de 44,7% entre os indivíduos com PSO após duas semanas de seguimento no grupo Covid‐19 positivo (tabela 2). Não houve diferença significativa na recuperação após 2 semanas de seguimento entre os grupos testados, p = 0,17.

Tabela 2.

Seguimento da perda de olfato no grupo testado para Covid ‐19

  Teste de Covid 19
  Negativo  Positivo 
  No (%) n = 20  No (%) n = 159 
Início
Perda parcial do olfato  5 (25%)  25 (15,7%) 
Perda total do olfato  15 (75%)  134 (84,3%) 
Após 2 semanas
Recuperação completa  7 (35%)  71 (44,7%) 
Perda parcial do olfato  8 (40%)  69 (43,4%) 
Perda total do olfato  5 (25%)  19 (11,9%) 

Independente dos grupos testados, a história de rinite alérgica não influenciou a recuperação da PSO, com p = 0,76 no grupo positivo para Covid‐19 e p = 0,60 no grupo negativo para Covid‐19.

Valor preditivo positivo

A PSO apresentou alto valor preditivo positivo para o diagnóstico de Covid‐19 durante a epidemia de coronavírus no Brasil, 159 (88,8%) (tabela 3).

Tabela 3.

Perda do olfato mostrou alto valor preditivo positivo (VPP) para o diagnóstico de Covid‐19

Perda súbita do olfato  Teste de Covid‐19 Positivo  Teste de Covid‐19 Negativo  VPPa 
Positivo  159  20  88,8% 
Negativo   
a

VPP = 159/159+20.

Discussão

Durante a pandemia da Covid‐19, a disponibilidade de exames para confirmação laboratorial da doença tem sido bastante limitada em relação à demanda para casos suspeitos no Brasil. Portanto, o teste foi priorizado para casos graves, que exigissem hospitalização, subestimou‐se o número real de pessoas infectadas e potencialmente a letalidade da doença. Apesar do grande número de pacientes em um curto período de coleta de dados, a maioria (75,3%) dos participantes não pôde ser testada para Covid‐19.

Estudos em todo o mundo indicam uma correlação entre disfunção olfativa e infecção por SARS‐CoV‐2.4,5,11,17–20 Estima‐se que até ⅔ dos pacientes com Covid‐19 tenham PSO e, na maioria dos casos, como observado no presente estudo, os pacientes descreveram a disfunção olfativa como anosmia súbita e, menos frequentemente, hiposmia.14

Em um número não desprezível de pacientes, principalmente paucissintomáticos, ageusia e anosmia podem representar a primeira ou única manifestação sintomática de Covid‐19.5,19 No presente estudo, 147 (92,5%) pacientes com PSO que testaram positivo para Covid‐19 também apresentaram déficit no paladar.

O mecanismo de comprometimento olfatório por Covid‐19 ainda não está esclarecido. Uma hipótese é que o SARS‐CoV‐2 causaria alteração de olfação pelo acesso direto e danos ao SNC através de sua penetração pela placa cribriforme.10 Outra hipótese seria o dano direto causado pelo vírus às células olfativas e aos receptores gustativos. As células gliais, os neurônios e a cavidade oral apresentam receptores da ECA‐2 que parecem ser o mecanismo de invasão celular pelo vírus. Eliezer et al. publicaram um relato de caso de Covid‐19 em que uma mulher de 40 anos procurou atendimento médico por anosmia, sem obstrução nasal. As imagens obtidas por tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM) mostraram sinais inflamatórios na fenda olfatória, sem alteração do bulbo olfativo. A possibilidade de alteração no volume do bulbo olfativo ser muito sutil nessa fase da doença poderia justificar a ausência de sua alteração na RM.20

Outro aspecto que deve ser mencionado é o número de indivíduos que tiveram PSO em tão pouco tempo. Potter et al. publicaram um estudo retrospectivo que analisou 587 pacientes com anosmia pós‐viral durante um ano de seguimento.15 Curiosamente, no presente estudo, coletamos dados de 725 pacientes com PSO em apenas duas semanas no momento desta análise de dados. Esse aumento súbito e surpreendente na frequência de indivíduos com PSO durante a pandemia de Covid‐19 nos leva a suspeitar imediatamente que isso se deve a esse tipo de coronavírus.

Esses resultados preliminares estão de acordo com os dados informados pela Sociedade Francesa de Otorrinolaringologia.22 Em nossa análise, um alto valor preditivo positivo para o sintoma de PSO foi observado no grupo que testou positivo para Covid‐19. Portanto, acreditamos que a PSO com ou sem obstrução nasal é um forte preditor da infecção por SARS‐CoV‐2 no contexto de uma epidemia. Esses dados podem se tornar relevantes quando há uma escassez de testes de laboratório para a Covid‐19. Com isso em mente, pacientes com PSO com ou sem outros sintomas podem ser classificados como “casos fortemente suspeitos”, permitem a implantação precoce de medidas para prevenir a transmissão da doença.

Outro trabalho feito no Reino Unido estabeleceu que a combinação de sintomas de anosmia, febre, fadiga, tosse persistente, diarreia, dor abdominal e perda de apetite pode identificar portadores de Covid‐19 com alta especificidade e sensibilidade moderada. O estudo também sugere que anosmia e disgeusia podem servir como métodos de triagem para pacientes com Covid‐19 durante uma epidemia.21

Mao et al. identificaram uma incidência de anosmia de 5,1% entre os pacientes hospitalizados na China com diagnóstico confirmado de Covid‐19.11 O estudo chinês avaliou apenas pacientes internados, diferentemente do estudo em que os pacientes ambulatoriais foram analisados. Ainda não se sabe se a PSO é um sintoma mais característico em pacientes com Covid‐19 leve ou grave. Esse fato enfatiza a questão de que a PSO não é o principal sintoma da pandemia de Covid‐19, mas, uma vez presente, os pacientes têm uma probabilidade de quase 90% de estar infectados.

No Irã, Bagheri et al. avaliaram os pacientes remotamente através de um questionário sem possibilidade de confirmação laboratorial de ambos os casos. Eles observaram uma correlação linear entre a proporção de casos estudados de anosmia ou hiposmia e casos positivos de Covid‐19 (p < 0,001). No mesmo estudo, apenas 1,1% dos pacientes que relataram olfação alterada foi hospitalizado por problemas respiratórios.4

Atualmente, não é possível determinar se haverá uma recuperação do sentido do olfato e quanto tempo levará para que o mesmo seja recuperado.5,19 Em nosso estudo, quase 50% dos que foram acompanhados apresentaram melhoria nos sintomas da PSO em duas semanas. Também observamos que a comorbidade da rinite alérgica não afetou a melhoria da perda do olfato.

Este estudo apresenta algumas limitações impostas pelo contexto da pandemia de Covid‐19 e pela própria natureza do estudo. Considerando que a pesquisa de dados foi feita através de instrumento online, todos os questionários foram respondidos pelos próprios pacientes. Isso ocorreu porque o custo da interrupção do distanciamento social não seria compensado pelo atendimento médico presencial. As questões relacionadas ao preenchimento adequado do questionário foram resolvidas através de contato direto entre pesquisadores e participantes via mensagem eletrônica e telefone.

Outro aspecto está relacionado à metodologia usada para testar os casos, a qual não foi discriminada, embora saibamos que, durante grande parte do período em que os dados foram coletados, apenas o teste de RT‐PCR estava disponível no Brasil. Não foi possível estabelecer uma correlação entre a gravidade do quadro clínico e a PSO, uma vez que nosso estudo foi desenhado para avaliar pacientes ambulatoriais.

Finalmente, nosso estudo não mostrou diferenças significantes entre as comorbidades associadas à PSO em pacientes com teste positivo ou negativo para Covid‐19, o que tornou esse sintoma um excelente preditor para infecção por SARS‐CoV‐2.

Até o momento, os testes disponíveis para diagnosticar a Covid‐19 têm baixa sensibilidade. Portanto, resultados falso‐negativos são comuns. Então, o VPP da PSO para diagnosticar Covid‐19 observado neste estudo (88,8%) provavelmente está subestimado, o que nos leva a crer que o verdadeiro VPP da PSO deve ser ainda maior durante a pandemia de COVI‐19.

O comportamento clínico da Covid‐19 é bastante variável, sem sintoma patognomônico identificado até o momento. Considerando a baixa sensibilidade e a escassez de exames laboratoriais, a PSO pode ser útil como critério diagnóstico em situações epidêmicas, dispensa exames complementares e permite a instituição de medidas imediatas baseadas em um diagnóstico presuntivo com alta precisão.

Conclusão

Existe uma forte relação entre PSO e Covid‐19, que pode ser considerada um sintoma de destaque da doença durante a epidemia, devido ao seu elevado VPP. A identificação de PSO durante uma epidemia pode servir como sintoma sentinela e pode ser um aviso para estabelecer medidas para impedir a transmissão da doença. Além disso, em uma epidemia de Covid‐19, a PSO pode ser considerada um critério clínico para o diagnóstico de Covid‐19 quando os exames laboratoriais não estiverem disponíveis.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Agradecimentos

João de Mello Rezende Neto, do Laboratório de Bioquímica Experimental e Computacional de Medicamentos do Instituto Oswaldo Cruz, por sua ajuda com a análise estatística.

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Como citar este artigo: Joffily L, Ungierowicz A, David AG, Melo B, Brito CL, Mello L, et al. The close relationship between sudden loss of smell and Covid‐19. Braz J Otorhinolaryngol. 2020;86:632–8.

A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.

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