Introdução: A laringectomia é um procedimento que objetiva a retirada do osso hiode, da laringe e seus músculos, e, com isso acredita-se que ocorra uma desestabilização do eixo hiódeo-mandibular, com consequente alteração na mastigação.
Objetivo: Caracterizar a amplitude e a velocidade mastigatória em laringectomizados e compará-las com dois grupos de indivíduos não laringectomizados, de acordo com a faixa etária.
Método: Participaram do estudo 72 voluntários, que foram divididos em três grupos: (A) 32 voluntários, não laringectomizados com idade média de 22,3 anos, sendo 17 do sexo feminino; (B) c20 voluntários não laringectomizados, idade média de 53,2 anos, dos quais 10 eram do sexo feminino; e (C) 20 voluntários submetidos à laringectomia total, idade média de 61,5 anos, sendo um do sexo feminino. Para a avaliação foi utilizada a eletrognatografia, que é um método objetivo e não invasivo que rastreia e mensura milimetricamente os movimentos mandibulares.
Resultados: Foram encontradas grandes diferenças entre os grupos A e C na velocidade e amplitude mastigatória, e essas diferenças foram significativas.
Conclusão: Fatores etários, adaptativos e compensatórios parecem explicar melhor as alterações mastigatórias do que fatores relacionados à laringectomia total.
Introdution: Laryngectomy is a surgical procedure that aims to remove the hyoid bone and the larynx and its muscles; it is inferred that a destabilization of the hyoid-mandibular axis will occur, consequently changing chewing.
Objective: To characterize the amplitude and speed of chewing in laryngectomies and to compare them with two groups of non-laryngectomized individuals differentiated by age.
Method: 72 volunteers were divided into three groups: (A) 32 volunteers, mean age 22.3 years, 17 females; (B) 20 volunteers, mean age 53.2 years, 10 females, and (C) 20 volunteers who underwent total laryngectomy, mean age 61.5 years, one female. Electrognathography, a method that tracks and measures millimeter jaw movements, was used for evaluation.
Results: Significant diferences were observed between groups A and C in masticatory amplitude and speed.
Conlcusion: Age, and adaptive and compensatory changes appear to explain chewing better than factors related to total laryngectomy.
Introdução
A laringectomia total é um método de tratamento cirúrgico de câncer de laringe. O procedimento é caracterizado pela remoção total da laringe, da base da língua à traqueia, incluindo o osso hioide e o espaço pré-epiglótico,1-3 levando a inutilização de vários sistemas e a consequente alteração de suas características funcionais, como no sistema estomatognático.4,5
A inutilização entre as regiões supra e infra-hióideas que ligam a mandíbula, o osso hioide, o esterno e a clavícula6,2 interfere diretamente no funcionamento do sistema estomatognático, levando o paciente a desenvolver parafunções neuromusculares compensatórias com as estruturas musculares restantes.7,8 Essas parafunções representam o impacto intrincado na biomecânica mandibular decorrente do dano a estruturas pertencentes ou relacionadas ao sistema estomatognático.9,10,11 Uma maneira de analisar essa biomecânica é medindo a amplitude e a velocidade dos movimentos da mandíbula, variáveis preditivas dessas mudanças cinemáticas. Neste contexto, a eletrognatografia (ENG), um método que aplica a tecnologia de rastreamento de movimentos utilizando sensores magneto resistivos, pode ser um excelente meio para obter esses dados.12,13
A medição da amplitude e da velocidade de movimentos relacionados à biomecânica mandibular de laringectomizados totais ainda não foi relatada na literatura. A importância deste trabalho é o levantamento de dados quantitativos que podem servir de base, reorganizar ou auxiliar programas terapêuticos multidisciplinares direcionados a este segmento da população.
O objetivo deste estudo foi caracterizar a amplitude e a velocidade de ciclos mastigatórios em laringectomizados totais avaliados por eletrognatografia e compará-las com dois grupos de indivíduos não laringectomizados de acordo com a idade.
Método
Estudo transversal, observacional e exploratório, tipo casuístico, com comparação de grupos, conduzido entre fevereiro e julho de 2012. O estudo incluiu pacientes submetidos à laringectomia total e voluntários sem interferência cirúrgica no pescoço ou na cabeça.
Setenta e dois indivíduos de ambos os gêneros participaram do estudo com a seguinte distribuição: grupo A composto de 32 voluntários, com idade média de 22,3 anos; grupo B incluindo 20 voluntários, com idade média de 53,2 anos; grupo C consistindo em 20 pacientes submetidos à laringectomia total, com idade média de 61,5 anos e pós-operatório médio de 3,65 anos, incluindo uma paciente do sexo feminino (5%) .
Adotando como principal parâmetro o pós-operatório restrito à laringectomia total com dissecção do pescoço na ausência de complicações recentes no pós-operatório ou dificuldade em entender instruções simples, a população estudada consistiu em 20 pacientes (grupo C).
O tipo de amostra foi definido pelas características do grupo de indivíduos não laringectomizados. Por esse motivo, adotamos para esses participantes a amostragem não probabilística, por acessibilidade ou conveniência, que se baseia na especificidade do indivíduo e que pode representar todo esse universo, sendo um estudo descritivo e exploratório.14
Para determinar o tamanho da amostra dos grupos comparados, identificados como grupo jovem-adulto (também denominado grupo A) e grupo adulto (também denominado grupo B), pressupomos a proporção 1,6:1,0, com nível de significância de 0,05 e 80% de poder de evidência estimado em 31 indivíduos no grupo A e 19 no grupo B; estimativas adequadas para o grupo B reuniram mais características semelhantes ao universo de pacientes laringectomizados.15
Os grupos A e B tiveram como critérios de inclusão comuns o fato de serem indivíduos de ambos os sexos, dentados ou parcial ou totalmente desdentados, com ou sem prótese ou aparelhos ortodônticos, não submetidos à cirurgia nas regiões da cabeça e pescoço; sem queixas de disfagia, não submetidos aqualquer fisioterapia e/ou tratamento fonoaudiológico e sem dificuldade em entender ordens simples. Os critérios de exclusão para os grupos A e B foram a presença de doenças neurológicas, neuromusculares ou neurodegenerativas e diagnóstico clínico de sintomas agudos de disfunções temporomandibulares nos testes.
O critério de inclusão diferencial entre os grupos A e B foi a idade. O grupo A incluiu jovens adultos com idade entre 18 e 29, e o grupo B incluiu indivíduos com 40 anos ou mais.
Fase de coleta de dados
Após ler e assinar o consentimento informado, os voluntários foram submetidos a exames de histórico e físico específicos.
Para a eletrognatografia, o voluntário foi instruído a sentar-se confortavelmente em uma cadeira com a cabeça ereta e os olhos direcionados para a frente.
O equipamento utilizado foi o eletrognatógrafo JT-3D da marca BioRESEARSH®. O programa utilizado para leitura dos dados captados foi o BioPak System.
Na coleta dos parâmetros da eletrognatografia, um pequeno ímã foi originalmente fixado na superfície vestibular dos incisivos inferiores correspondentes ao nível da linha média, e o suporte para a cabeça foi simetricamente regulado.
Para avaliar o ciclo mastigatório, solicitamos que um voluntário mastigasse 15 g de pão por 20 segundos. O funcionamento da mandíbula e o consequente movimento do sensor magnético foram captados pelo eletrognatógrafo, transmitidos e registrados em computador, permitindo a visualização e a análise de todos os gráficos de movimento mandibular interno.
A varredura no visor (fig. 1) analisou: a) o número total de ciclos, b) o número de lateralização de ciclos para a direita, c) o número de lateralizações para a esquerda, d) número de protrusões; e e) número de retrusões. No visor XY (fig. 2) foram mensurados valores máximos das variáveis: a) amplitude de abertura no plano frontal; b) lateralidade direita no plano horizontal; c) movimento de lateralidade esquerda no plano horizontal; d) protrusão no plano sagital; e) retrusão no plano sagital; f) velocidade máxima de abertura; e g) velocidade máxima de fechamento.
Figura 1. Pelo gráfico Vert, realizamos a contagem total do número de ciclos; pelo gráfico Lat, realizamos a contagem do número de ciclos mastigatórios para a direita e para a esquerda; e pelo gráfico A/P, realizamos a contagem do número de protrusões e retrusões.
Figura 2. Por meio do gráfico de VELOCIDADE, observamos as velocidades máximas de abertura (lado O do gráfico) e fechamento (lado C do gráfico); por meio do gráfico SAGITAL, observamos a protrusão máxima (lado A do gráfico) e a retração máxima (lado P do gráfico); por meio do gráfico FRONTAL, observamos a amplitude de abertura máxima; por meio do gráfico HORIZONTAL, observamos a lateralidade direita máxima (lado direito do gráfico) e a lateralidade esquerda máxima (lado esquerdo do gráfico).
Todas as medições foram resumidas como média, erro padrão médio, intervalo de confiança de 95%, mediana e intervalo interquartil. Na comparação entre os grupos A, B e C, o teste ANOVA foi utilizado para diferenças entre as médias. Em casos sem diferença significativa, o contraste post-hoc de Dunnett foi utilizado para identificar diferenças entre os grupos, utilizando o grupo C como parâmetro. Em casos sem relevância de acordo com o teste ANOVA, o teste t foi utilizado para diferença de médias, também admitindo o grupo C como parâmetro. Em todos os testes, um nível de significância de 0,05 foi utilizado para rejeição das hipóteses nulas de igualdade de médias entre grupos.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, recebendo o registro CAAE nº 0014.0.447.172-10. A Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e a Declaração de Helsinki de 2008 foram seguidas.
Resultados
O número de ciclos mastigatórios de laringectomizados foi semelhante nos grupos A e B, porém diferiram na frequência de lateralizações. As lateralizações para a direita foram mais frequentes que as esquerdas, semelhante às observadas em adultos no grupo B; contudo, essas lateralizações atingiram maior frequência que as observadas no grupo A (tabela 1).
Assim, o resultado foi a tendência à lateralização para a direita como diferenciação dos grupos em detrimento da principal diferença entre o grupo A e o grupo C, que atingiu relevância estatística. Essa diferença, contudo, esteve ausente na lateralização para a esquerda, para a qual não houve diferença entre grupos, no que diz respeito ao grupo C em comparação aos grupos A e B.
No que diz respeito às velocidades dos ciclos mastigatórios, houve diferença entre grupos no número de ciclos por segundo e na velocidade máxima de deslocamento mandibular tanto na abertura quanto no fechamento da boca. O grupo C foi significativamente diferente do grupo A por ter menor número de ciclos por segundo e alta variação de velocidade, o que foi demonstrado com o maior intervalo interquartil.
Com relação à velocidade de deslocamento máxima (mm/s), da mesma forma, a diferença significativa observada entre grupos ocorreu em virtude da diferença entre os grupos C e A. Pacientes laringectomizados apresentaram maior deslocamento por unidade de tempo e maior variabilidade desse movimento (tabela 1). Essas diferenças foram significativas.
Ao detalhar a velocidade de deslocamento mandibular máxima, foi observado que a média da velocidade máxima de abertura atingiu relevância apenas quando comparadas as médias dos três grupos, exceto ao considerar o grupo C como padrão para comparação. Apesar da ausência de relevância entre os grupos A e B e o grupo dos laringectomizados, vale mencionar que o erro padrão médio do grupo C divergiu mais do grupo A que do grupo B. No que diz respeito às médias de velocidade de fechamento mandibular máxima, a relevância observada entre grupos foi determinada pela diferença entre os grupos C e A. No que diz respeito à média de divulgação máxima avaliada no plano frontal, não houve diferenças significativas entre grupos (tabela 1).
A tabela 2 apresenta os resultados dos parâmetros estatísticos relacionados ao estudo de protrusões e retrusões encontradas no ciclo mastigatório dos três grupos. Não houve diferenças significativas entre os grupos A e B com relação C, tanto no número de protrusões quanto na média de protrusão máxima avaliada no plano sagital.
No que diz respeito a retrusões, os grupos não diferiram em frequência e variabilidade. Essa diferença esteve presente no valor médio de retrusão máxima, havendo a tendência estatística de o grupo C ter valores menores que os de A e B, pois o valor de p ficou entre 0,05 e 0,10. Ao comparar cada grupo separadamente com os pacientes laringectomizados, esses demonstraram uma tendência de retrusão máxima em média menor que a do grupo A e significativamente menor que a do grupo B (tabela 2).
A retrusão lateral máxima, medida no plano horizontal, apresentou comportamento distinto de acordo com a lateralidade. Com lateralidade direita, os valores do grupo C foram próximos das medições nos grupos A e B. Contudo, com lateralidade esquerda, os valores foram significativamente menores no grupo C em comparação aos três grupos, porém com maior intervalo de variação. A comparação entre o grupo C, considerado padrão, e os dois outros grupos, constatou que os pacientes laringectomizados apresentaram retrusão lateral máxima média para a esquerda significativamente menor que no grupo A (tabela 2).
Discussão
Nos últimos anos, diversos estudos foram realizados sobre a possível relação dos músculos supra e infra-hióideos e o osso hioide na mastigação, nas alterações temporomandibulares e na espinha cervical, entretanto, sem um consenso que tornasse possível a orientação de uma equipe profissional na abordagem clínica do paciente.16 Essa dificuldade identificou a grande complexidade do problema e a multiplicidade de fatores que poderiam estar envolvidos.11
A caracterização eletrognatográfica da amplitude e da velocidade dos ciclos mastigatórios em pacientes laringectomizados totais, por sua vez, demonstrou uma biomecânica mandibular ainda mais complexa, que pareceu ser decorrente da remoção dos músculos supra e infra-hióideos e do osso hioide, além da influencia do processo de envelhecimento dos músculos.
A pesquisa realizada para caracterizar o mecanismo hioide no ciclo mastigatório mostra a necessidade de sinergia entre o envolvimento dos músculos masseter, temporal e pterigóideo medial na elevação da mandíbula, e a ação dos músculos supra-hióideos, do ventre anterior do digástrico, milo-hióideo, gênio-hióideo, pterigóideo lateral, músculos da mímica, músculos da língua e infra-hióideos como depressores da mandíbula, dependendo da posição do osso hioide.17 A fixação do osso hioide pelos músculos infra-hióideos permite que os músculos depressores promovam a abertura da boca.18
Além disso, por meio de estudos eletromiográficos, houve também comprovação de sinergismo entre os músculos extensores e flexores da cabeça na espinha cervical e da atividade de músculos supra e infra-hióideos e, portanto, da posição do osso hioide, que contribui com a estabilidade do movimento do ciclo mastigatório.19
Neste contexto, é possível supor que a laringectomia total, com a excisão dos músculos supra e infra-hióideo, bem como do osso hioide e os músculos da língua, promova novas dinâmicas no ciclo mastigatório, o que parece ter sido comprovado neste estudo. Mesmo considerando que em pacientes laringectomizados totais a área de mastigação é a que sofre menos impacto sobre a qualidade de vida em comparação à perda da voz, as constatações apresentadas são relevantes para o entendimento dessa nova cinemática.20
Essa nova cinemática consistiu em manter o número de ciclos mastigatórios, com mudanças na frequência e na direção da lateralização, o que pareceu ter sido determinado principalmente pelo processo de envelhecimento, pois a diferença foi observada ao comparar o grupo de laringectomizados apenas ao grupo mais jovem (grupo A), o mesmo não ocorrendo em relação ao grupo com idade semelhante à dos pacientes.
As características compensatórias e adaptativas do sistema estomatognático relacionadas à diferença de idade, na divulgação desses dados21,22 também pareceram explicar as mudanças na velocidade expressas no número de ciclos mastigatórios por segundo (ciclos/20s). O valor qualitativo prevaleceu sobre a aparência adquirida por meio de ação cirúrgica da laringectomia total,20 uma vez que a relevância estatística foi detectada no grupo C. Houve um menor número de ciclos por segundo e maior variação de velocidade em relação ao grupo A, expressos por um intervalo interquartil maior (7,00 ciclos/20s no grupo C contra 13,00 ciclos/20s no grupo A).
A evidência mais forte de que o envelhecimento pode ter contribuído com adaptações mastigatórias esteve presente, contudo, nas médias de velocidade máxima de deslocamento mandibular normal na abertura e no fechamento, pois o grupo C se assemelhou ao grupo B e diferiu significativamente do grupo A tanto no deslocamento geral quanto no fechamento.
Variáveis como a abertura bucal máxima em milímetros, a quantidade máxima de protrusões e a protrusão máxima em milímetros não mostraram nenhuma mudança significativa. Apesar dessa constatação ter corroborado a evidência de Paula e Chaud (2009),20 de que a característica mastigatória é a menos afetada em laringectomizados totais, é plausível supor que medições de movimentos periféricos laterais possam revelar características estatísticas significativas.23
Além disso, a tendência de os pacientes laringectomizados mostrarem retrusão máxima média, retrusão lateral máxima avaliada no plano horizontal e retrusão lateral máxima para a esquerda menor que nos grupos de pacientes não laringectomizados mostrou, pela primeira vez, a desordem temporária ou permanente das funções estomatognáticas, consequente da laringectomia total e atribuível à manipulação cirúrgica nas regiões supra e infra-hioideas.24-26
Conclusão
A análise das variáveis sugeridas, as alterações no ciclo mastigatório avaliadas por eletrognatografia permitiram provar a existência de traços compensatórios e adaptativos em pacientes laringectomizados, resultantes da ação conjunta do fator idade e alterações possivelmente atribuíveis à laringectomia total.27,28
Financiamento
Este estudo foi conduzido pelo FACEPE (Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco).
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
Recebido em 18 de maio de 2013;
aceito em 12 de agosto de 2013
☆ Como citar este artigo: Pinheiro PF Jr, Albuquerque LCA, Lima-Silva CL, Silva NF, Cunha DA, Silva HJ. Amplitude and speed of masticatory movements in total laryngectomy patients. Braz J Otorhinolaryngol. 2014;80:138-45.
DOI se refere ao artigo: 10.5935/1808-8694.20140029
* Autor para correspondência.
E-mail: fono_lucas@hotmail.com (L.C.A. Albuquerque).