O tratamento cirúrgico do hiperparatireoidismo relacionado à doença renal crônica é um verdadeiro desafio para a saúde pública brasileira. Medicamentos de alto custo e longas filas de espera para exames pré‐operatórios, principalmente a cintilografia com tecnécio Tc‐99m Sestamibi, MIBI, são alguns dos motivos. Apesar da contribuição de exames de localização ser questionável nesse cenário, os médicos ficam muito apreensivos por fazer uma cirurgia sem ele.
ObjetivoAvaliar a eficácia da cirurgia para hiperparatireoidismo renal sem o MIBI pré‐operatório.
MétodoForam tratados cirurgicamente 114 pacientes. A paratireoidectomia total com autotransplante e a paratireoidectomia subtotal foram feitas sem MIBI pré‐operatório.
Resultados e conclusãoEntre os 114 pacientes submetidos à cirurgia, 37 apresentavam hiperparatireoidismo secundário em reposição dialítica e 77 doença persistente pós‐transplante renal. Tivemos sucesso em 107 casos, com apenas 7 falhas (93,8% de taxa de sucesso). Entre essas falhas, uma glândula paratireoide não foi encontrada em 4 casos, 2 glândulas paratireoides não foram encontradas em 2 casos e em um paciente as 4 glândulas foram encontradas, mas ele permaneceu hipercalcêmico com diagnóstico pós‐operatório de glândula paratireoide supranumerária. A cirurgia para tratamento do hiperparatireoidismo renal mostrou‐se um procedimento eficaz (93,8%) e reprodutível mesmo sem MIBI.
O hiperparatireoidismo (HPT) relacionado à doença renal crônica (DRC) resulta da hipersecreção do hormônio da paratireoide (PTH) associada à perda progressiva da função renal. Retenção de fósforo, hipocalcemia e redução da síntese de vitamina D estimulam a hiperplasia das células da glândula paratireoide, que com o tempo pode se tornar autônoma.1,2
Como essa condição de autonomia aumenta a morbidade, especialmente devido a eventos cardiovasculares, o HPT relacionado à DRC deve ser tratado assim que identificado.1,2
A paratireoidectomia (PTX) é a opção cirúrgica para o tratamento desses pacientes, mas é reservada para os casos de falha clínica ou para os casos de hipercalcemia persistente após o transplante renal bem‐sucedido.
Porém, a realidade do tratamento desses pacientes no Brasil está longe da ideal. Medicamentos como calcimiméticos e análogos modernos da vitamina D (paricalcitol) não estavam disponíveis para uso na saúde pública até 2018.3
Além disso, 10% dos aproximadamente 130.000 pacientes em hemodiálise em todo o país apresentam valores de PTH acima de 1.000 pg/mL. Essa população com HPT mais grave já demonstrou pior resposta ao tratamento clínico, o que torna a PTX sua melhor opção.4,5
Infelizmente, apenas uma fração desses pacientes é submetida à cirurgia. Isso acontece por motivos diversos. O mais importante deles é o acesso restrito a exames de localização pré‐operatórios, especialmente a cintilografia com tecnécio Tc‐99m sestamibi (MIBI).5
A suposição de que os exames de localização podem facilitar a cirurgia e evitar falhas e possíveis reoperações devido à sua capacidade de identificar glândulas ectópicas ou supranumerárias é defendida por alguns autores.6
A literatura relata a eficiência dos exames de localização em pacientes com HPT relacionada à DRC.6–10 Nossa experiência sobre esse tema também já foi publicada.11,12
A análise desses estudos indica que os exames de localização não são essenciais para o sucesso da PTX nesse grupo de pacientes9 e podem até ser considerados secundários.12 Entretanto, os cirurgiões em todo o país parecem muito apreensivos ao fazer cirurgias sem esses exames.
O objetivo deste estudo é verificar a eficácia da PTX em pacientes com HPT relacionada à DRC que não foram submetidos ao MIBI como exame pré‐operatório.
MétodoO estudo analisou retrospectivamente os pacientes submetidos à PTX entre 2010 e 2016. Foram incluídos todos os pacientes submetidos a PTX para HPT relacionada à DRC que não fizeram o MIBI como exame de localização e que tiveram pelo menos 6 meses de seguimento após a cirurgia. Foram incluídos na coorte 114 pacientes.
Todas as cirurgias foram indicadas com base nas recomendações da Sociedade Brasileira de Nefrologia.13 Os exames de localização incluíram apenas ultrassonografia cervical feita por vários radiologistas.
Os procedimentos feitos foram PTX total com autotransplante ou PTX subtotal, de acordo com os padrões institucionais.12 O hormônio da paratireoide intraoperatório (PTHio) foi coletado, mas, devido à rotina do laboratório de nossa instituição, seu resultado foi avaliado apenas retrospectivamente, não influenciou a decisão cirúrgica.
O sucesso cirúrgico foi considerado quando todos os critérios foram atendidos; pelo menos 4 glândulas paratireoides intraoperatórias foram identificadas durante a cirurgia; houve declínio do PTHio acima de 70%14 e os pacientes deveriam estar normocalcêmicos durante o seguimento.
Os procedimentos foram feitos em 2 hospitais terciários. Todas as cirurgias foram feitas pelo mesmo cirurgião.
O número de aprovação do conselho de ética da instituição é 638.873 e o número de aprovação da plataforma Brasil é CAAE 30650514.4.0000.5505.
Faixa de referência para exames laboratoriais: cálcio iônico (Cai) 1,00–1,35 mmoL/dL; PTH 15–68,3 pg/dL.
ResultadosEntre os 114 pacientes incluídos na análise, 37 estavam em hemodiálise no momento da cirurgia e serão chamados de grupo HPT secundário (HPTS) e 77 tinham sido submetidos a transplante renal e são denominados de grupo HPT pós‐transplante renal (HPTpTx). Os demais dados demográficos em ambos os grupos são apresentados na tabela 1.
Dados demográficos dos dois grupos da coorte
HPTS | HPTpTx | |
---|---|---|
Número de pacientes | 37 | 77 |
PTH | 2.057,3 | 508,9 |
Idade | 44,5 | 50,8 |
Tempo de hemodiálise | 8,33 | 5,81 |
Tempo desde o transplante renal | – | 4,05 |
Nota: número de pacientes em número absoluto; PTH em valor médio (intervalo de referência 15–68,3 pg/dL); idade em média de anos; tempo médio de hemodiálise em média de anos e tempo desde o transplante renal em média de anos.
HPTS, hiperparatireoidismo secundário; HPTpTx, hiperparatireoidismo pós transplante renal.
O número de glândulas paratireoides identificadas corretamente por ultrassom foi de 0, 1, 2, 3 e 4 glândulas, respectivamente, em 34 (23,6%), 47 (32,6%), 37 (25,7%), 14 (9,7%) e 12 (8,3%) pacientes.
De acordo com os critérios estabelecidos, o sucesso cirúrgico foi obtido em 107 pacientes e houve 7 falhas, que resultaram em uma taxa de sucesso cirúrgico inicial de 93,8%.
Entre os 107 pacientes que obtiveram sucesso cirúrgico, 82 (76,6%) foram submetidos à PTX total com autotransplante e 25 (23,3%) à PTX subtotal. Os valores médios de PTHio e os níveis de Cai e PTH aos 6 meses de pós‐operatório desse grupo de sucesso são mostrados na tabela 2. O declínio médio de PTHio foi de 82,6%.
Dados laboratoriais do grupo de sucesso cirúrgico
Grupo | Número de pacientes | PTHio | Cai (6 meses) | PTH (6 meses) |
---|---|---|---|---|
HPTS | 35 | 86,31% | 1,03 | 346 |
HPTpTx | 72 | 81,07% | 1,05 | 65,2 |
Nota: Pacientes em valor absoluto, declínio médio de PTHio; valores médios de Cai (intervalo de referência 1,00‐1,35 mmoL/dL); valores médios de PTH (intervalo de referência 15–68,3 pg/dL).
PTHio, hormonio da paratireoide intraoperatório; Cai, cálcio iônico.
Os 7 (6,2%) casos de falha ocorreram devido aos seguintes fatos: em 4 pacientes, apenas 3 glândulas paratireoides foram identificadas; em 2 pacientes, apenas 2 glândulas paratireoides foram identificadas; e em um caso, 4 glândulas foram identificadas e removidas, mas o paciente permaneceu hipercalcêmico devido a uma glândula supranumerária.
Os valores médios de PTHio e os níveis de Cai e PTH aos 6 meses de pós‐operatório desse grupo são apresentados na tabela 3.
Dados laboratoriais do grupo de falha cirúrgica
Grupos | Número de pacientes | PTHio | Cai (6 meses) | PTH (6 meses) |
---|---|---|---|---|
HPTS | 2 | 57,35% | 1,25 | 704,9 |
HPTpTx | 5 | 38,32% | 1,41 | 118,87 |
Nota: Pacientes em valor absoluto, declínio médio de PTHio; valores médios de Cai (intervalo de referência 1,00‐1,35 mmoL/dL); valores médios de PTH (intervalo de referência 15–68,3 pg/dL).
PTHio, hormonio da paratireoide intraoperatório; Cai, cálcio iônico.
Este estudo demonstrou que a PTX feita como tratamento de pacientes portadores de HPT relacionada à DRC apresenta alta taxa de sucesso cirúrgico de 93,8%, mesmo quando feita sem MIBI pré‐operatória.
É indiscutível a importância dos exames de localização no HPT primário, com vistas a uma dissecção cirúrgica focal. Porém, diante de HPTS ou HPTpTx, a cirurgia focal não é mais uma opção e a importância dos exames de localização torna‐se questionável.
Uma revisão sistemática de Magnabosco et al., com 23 estudos e 947 pacientes nos quais o MIBI foi feito, apresentou um sucesso cirúrgico de 67,4% em pacientes com HPT renal.15 Como todos os estudos incluídos apresentaram critérios de sucesso cirúrgico diferentes, uma comparação direta entre essas taxas não é possível, embora demonstre que, mesmo sem o MIBI, a PTX é um procedimento eficiente.
Nosso grupo publicou estudos anteriores que mostraram quão pequena é a ajuda de exames de localização na cirurgia de HPT renal.11,12,16 Em um deles, em 518 cirurgias consecutivas, houve uma taxa de 97% de localização cirúrgica das glândulas paratireoides, apesar do fato de que a maioria dos exames de localização identificou 2 ou menos glândulas.12
Esse fraco desempenho também se aplica à ultrassonografia. Nessa coorte de estudo, menos de 20% dos exames identificaram corretamente 3 ou mais glândulas, o que está de acordo com nossa experiência anterior.12 Apesar disso, reconhecemos a importância da ultrassonografia para analisar a glândula tireoide em busca de nódulos e doenças concomitantes
Outros autores também apontam a pequena ajuda que os exames de localização conferem à PTX em pacientes renais. Lai et al. em 2007 mostraram que o MIBI localizava corretamente apenas 36,6% das glândulas paratireoides10 e Spence et al. em 2019 mostraram que 51% do MIBI eram completamente falhos; 40% tiveram sucesso apenas parcial; menos de 9% tiveram uma alta taxa de identificação.9
Gasparri et al.,8 em estudo semelhante ao nosso, mostraram apenas 6,2% de persistência em 187 pacientes operados sem MIBI e PTHio, um resultado semelhante a este estudo. Os mesmos autores observaram 4,9% de persistência em 209 pacientes quando apenas o PTHio foi feito e 0,1% de persistência quando ambos foram feitos.8 Entretanto, a análise estatística mostrou que apenas o PTHio apresentou alguma diferença e que o MIBI sozinho não foi capaz de alterar as taxas de persistência ou recidiva dos pacientes.
No entanto, reconhecemos que a correta identificação de todas as glândulas é fundamental para o tratamento cirúrgico e que a paratireoide ectópica representa um grande desafio cirúrgico. Também é compreensível que serviços com alto volume e cirurgiões experientes possam alcançar taxas mais altas de sucesso cirúrgico.
Nesse sentido, autores como Karipineni et al.6 e Loftus et al.7 entendem o MIBI como uma ferramenta importante na identificação dessas ectopias e consideram o exame de localização primordial, mesmo para a primeira cirurgia.
Muito embora alguns pacientes possam se beneficiar da localização das glândulas paratireoides ectópicas, em geral o exame MIBI apresenta pequeno custo‐benefício.
A escolha de não fazer rotineiramente o MIBI nesses pacientes envolve ganhos secundários. O primeiro e mais óbvio é a redução do custo geral do tratamento através da redução potencial de mais de 90% dos exames, pois seriam feitos apenas em casos específicos ou em casos de persistência ou recorrência.
Outro aspecto relevante é a economia no tempo no tratamento. A rede pública de saúde no Brasil tem uma grande restrição no tratamento desses pacientes. O último censo feito no país apontou mais de 13.000 pacientes que aguardam cirurgia4 e que o MIBI representa a principal causa restritiva de acesso à PTX.5
O potencial ganho de tempo e o acesso facilitado à cirurgia pela não obrigatoriedade da feitura do MIBI pré‐operatório podem trazer vantagens incalculáveis. Araújo et al. em 2017 mostraram que o custo do tratamento clínico anual desses pacientes é de R$27.712,95 contra um custo cirúrgico anual de apenas R$16.841,85.3 Obviamente, essa clara vantagem do custo cirúrgico ocorre apenas em casos graves de HPT, aqueles que realmente se beneficiam do tratamento cirúrgico.
Além de todas essas vantagens, um tratamento mais eficiente pode reduzir o número de internações e melhorar o quadro clínico, principalmente ao prevenir complicações secundárias ao HPT relacionadas a distúrbios ósseos e minerais, como melhoria do controle da pressão arterial, redução da anemia, melhoria do estado nutricional e da qualidade de vida.17
O alto volume desse tipo de cirurgia em nosso hospital terciário pode ajudar a mitigar a ansiedade de fazer a PTX sem MIBI. Apesar disso, o objetivo deste estudo é mostrar a plausibilidade e segurança da cirurgia apesar do MIBI, mesmo em centros de baixo volume. Nossos pacientes com insucesso serão mantidos sob estreita vigilância clínica e, diante de uma nova indicação cirúrgica, exames de localização, inclusive um MIBI, deverão ser feitos.
ConclusãoA PTX total ou subtotal é um procedimento eficaz e reproduzível mesmo sem o MIBI pré‐operatório. Os exames de localização desempenham um papel mais importante nos casos de persistência e recorrência, são bastante essenciais nas reoperações. No sistema público de saúde brasileiro, a não obrigatoriedade da feitura do MIBI no pré‐operatório pode facilitar o acesso dos pacientes ao tratamento cirúrgico e reduzir consideravelmente a longa fila de espera.
FinanciamentoCoordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse
Como citar este artigo: Neves MC, Abrahão AR, Abrahão M, Rosano M, Rocha LA, Machado HK, Santos RO. Sestamibi scan in renal parathyroidectomy: a worthwhile preoperative exam? Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:740–4.
A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.