Na última década, houve a introdução e a difusão da cirurgia robótica transoral para o tratamento de tumores, principalmente da orofaringe e da laringe. O uso do robô melhora a visualização do campo operatório por sua imagem em três dimensões e potencializa a destreza do cirurgião devido ao controle bimanual dos braços do aparelho. Além disso, o auxiliar contribui com a aspiração e a tração de tecidos, o que leva ao uso de quatro instrumentos durante a operação, algo impossível durante uma ressecção transoral por laringoscopia, por exemplo.1 A técnica, portanto, torna a abordagem de fato minimamente invasiva, especialmente no caso da laringectomia parcial supraglótica, na qual a via convencional aberta leva inevitavelmente à traqueostomia de proteção e ao uso de sonda de alimentação, por vezes por períodos prolongados. O acesso robótico, entretanto, permite uma alimentação precoce, sem necessidade de sonda, e também dispensa a traqueostomia em muitos casos, uma vez que as taxas de aspiração, fístulas ou outras complicações são significativamente menores quando comparadas com a cirurgia convencional e com resultados oncológicos e funcionais bastante semelhantes entre as duas técnicas.2
Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi relatar o primeiro caso de laringectomia parcial supraglótica feita por cirurgia robótica transoral no Brasil, bem como demonstrar os resultados oncológicos e funcionais tardios (aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa sob o n° 228/14).
Relato de casoPaciente do sexo feminino, 57 anos, com queixa de odinofagia havia quatro meses, tabagista (30 anos/maço) e não etilista. Ao exame físico não apresentava lesões à oroscopia ou linfonodos cervicais palpáveis. À nasofibrolaringoscopia foi identificada lesão vegetante volumosa que acometia toda a epiglote e com extensão para prega ariepiglótica esquerda, sem acometer a aritenoide ou a banda ventricular esquerdas, ambas as pregas ainda são vocais móveis.
Uma biópsia incisional revelou tratar‐se de um carcinoma epidermoide moderadamente diferenciado. A tomografia computadorizada (fig. 1) demonstrou que a lesão tinha limites compatíveis com a laringoscopia, sem acometimento do espaço pré‐epigótico e sem linfonodos cervicais sugestivos de metástases. Não havia evidência de metástases pulmonares e a pesquisa de segundo tumor primário por endoscopia digestiva alta com cromoscopia resultou negativa, a neoplasia foi estadiada como T2N0M0 (estádio II).
A paciente foi então submetida a uma laringectomia parcial supraglótica robótica com o uso do aparelho daVinci SI Surgical System® (Intuitive Surgical®, Sunnyvale, Califórnia, EUA) (fig. 2), com duração total de 158 minutos, perda sanguínea de 50 mL com margens de congelação intraoperatória livres e sem intercorrências. Não houve necessidade de traqueostomia e a paciente foi extubada em sala, sob visão endoscópica. Da mesma forma, não foi introduzida sonda enteral e a paciente recebeu dieta líquida com espessante no segundo dia pós‐operatório, sem sinais de aspiração. O tempo de internação hospitalar foi de três dias. O exame anatomopatológico definitivo demonstrou um CEC moderadamente diferenciado, sem invasão perineural e angiolinfática e margens finais livres.
Após 24 dias de pós‐operatório a paciente foi submetida a esvaziamento cervical seletivo de níveis II, III e IV bilateral, sem intercorrências, cujo exame histopatológico não encontrou metástases nos 57 linfonodos dissecados, e recebeu alta hospitalar em 72 horas.
Não houve a indicação de tratamento adjuvante e a paciente permanece em seguimento ambulatorial sem evidência de doença, alimenta‐se normalmente e sem alterações vocais em 42 meses de seguimento.
DiscussãoDesde o primeiro trabalho publicado por Weinstein, em 2007,3 com a descrição dos primeiros três casos, alguns centros passaram a fazer a laringectomia supraglótica com auxílio do robô, porém o número de casos publicados ainda é baixo. A maior casuística encontrada na literatura reuniu 84 operações feitas em sete serviços franceses.1 Os autores demonstraram que a média de uso de sonda enteral foi de oito dias e que 24% dos pacientes reiniciaram dieta oral 24 horas após o procedimento. Somente 24% dos pacientes necessitaram de traqueostomia, porém houve pneumonia aspirativa em 23% dos casos, inclusive com um óbito por esse motivo. Sangramento pós‐operatório ocorreu em 15 pacientes e 51% necessitaram de radioterapia adjuvante devido aos achados anatomopatológicos, porém não há, neste estudo, a descrição dos resultados oncológicos desses pacientes.
Dessa forma, fizemos uma revisão sistemática da base de dados Medline até setembro de 2015 (com os unitermos laryngectomy e robotic surgery) e encontramos 11 trabalhos1,3–12 com 176 casos, além da paciente aqui relatada (tabela 1). Notou‐se que a maioria dos pacientes incluídos apresentou tumores em estádio precoce (estádios I e II) e também que a cirurgia foi feita com margens livres na maioria dos casos e com poucas complicações. A necessidade de traqueostomia e sonda enteral foi variável, porém por pouco tempo, na maioria das vezes. A necessidade de adjuvância foi baixa e os resultados oncológicos não demonstraram casos de recidiva local, o que demonstra a segurança do método.
Resultados da revisão sistemática dos casos publicados de laringectomias parciais supraglóticas robóticas por carcinoma epidermoide
Trabalho | n | Idade (anos) | Lesão primária | cT | cN | EC | Margens |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Weinstein, 20073 | 3 | 59 | Supraglote | T2 | N0 | Sim | Livres |
59 | T2 | N0 | Sim | Livres | |||
69 | T3 | N0 | Sim | Livres | |||
Alon, 20124 | 7 | 72 | Supraglote | T2 | N1 | Sim | Livres |
51 | T1 | N0 | Sim | Livres | |||
45 | T3 | N0 | Sim | Livres | |||
57 | T2 | N0 | Sim | Livres | |||
67 | T2 | N2b | Sim | Livres | |||
67 | T1 | N1 | Sim | Livres | |||
71 | T2 | Sim | Livres | ||||
Ozer, 201210 | 13 | 58 (média) | EP (100%) | 1 T1 | 11 N0 | Sim (todos) | Livres (todos) |
PAE (76,9%) | 10 T2 | 2 N2b | |||||
BV (23%) | 2 T3 | ||||||
BL (23%) | |||||||
EPE (15,3%) | |||||||
SP (15,3%) | |||||||
Ansarin, 20135 | 10 | 68 (média) | Supraglote | 2 T1 | 6 N0 | 40% | Positivas em 40% dos pacientes |
6 T2 | 4 N+ | ||||||
2 T3 | |||||||
Lallemant, 20138 | 10 | 64 | EP/PAE | T2 | N2c | Sim | Livres |
67 | EP | T2 | N1 | Sim | Livres | ||
75 | EP | T1 | N0 | Sim | Livres | ||
63 | EP/PAE | T1 | N0 | Sim | Livres | ||
60 | EP/PAE/BL | T2 | N2b | Sim | Livres | ||
50 | BV | T1 | N0 | Sim | Livres | ||
59 | PAE | T1 | N0 | Sim | Positivas | ||
60 | PAE/BV/AT | T2 | N0 | Sim | Livres | ||
67 | AT/PAE | T2 | N0 | Sim | Livres | ||
51 | PAE/BV/PV | T2 | N0 | Sim | Positivas | ||
Mendelsohn, 20139 | 18 | SD | Supraglote | 5 T3/4a | 6 EC | Livres em todos os casos | |
13 T1/2 | 12 LS | ||||||
Park, 201311 | 16 | 66 (média) | 10 EP | 7 T1 | 9 N0 | Não (2 casos | Positivas em 2 casos (12%) |
4 PAE | 5 T2 | 3 N1 | |||||
2 BV | 4 T3 | 3 N2b | T1N0 de EP | ||||
3 N2c | |||||||
Durmus, 20146 | 1 | 45 | EP/BV | T2 | N0 | Sim | SD |
Kayhan, 20147 | 13 | 60 (média) | Supraglote | 4 T1 | 9 N0 | Sim (todos) | Livres em todos os casos |
9 T2 | 3 N2c | ||||||
1 N3 | |||||||
Perez‐Mitchel, 201412 | 1 | 68 | BV | T2 | N0 | Não | Positivas |
Razafindranaly, 20151 | 84 | 59 (média) | Supraglote | 29 T1 | 54 N0 | 67 casos (80%) | Positivas em 8 casos (9,5%) |
46 T2 | 11 N1 | ||||||
9 T3 | 4 N2a | ||||||
9 N2b | |||||||
5 N2c | |||||||
1 N3 | |||||||
Trabalho | Complicações perioperatórias | TQT (dias) | SNE/GTM (dias) | Internação (dias) | Tratamento adjuvante | Recidiva local |
---|---|---|---|---|---|---|
Weinstein, 20073 | Não | – | – | 3 | – | SD |
Não | – | – | 8 | – | ||
Não | – | – | 5 | QT+RT | ||
Alon, 20124 | Não | – | – | SD | – | Não |
Não | – | 56 | – | Não | ||
Queimadura | 4 | 38 | – | Não | ||
Não | 45 | 45 | – | Não | ||
Não | Dependente | GTM RT | RT | Não | ||
Não | – | – | – | Não | ||
Não | – | GTM RT | RT | Não | ||
Ozer, 201210 | 1 conversão para margens negativas | 17 (1 caso) | 40 (1 caso) | 3,9 (média) | RT (2 casos N+) | Não (mediana de 6,8 meses) |
Ansarin, 20135 | Nenhuma nos 10 casos | 90% | 70% (média 12 dias) | 13 ± 6 dias (média) | 70% (5 QT+RT; 1 ampliação; 1 RT) | Não (mediana de 5 meses) |
Lallemant, 20138 | Não | 4 | 5 | SD | QT+RT | Não |
Não | – | 2 anos | RT | Não | ||
Não | – | 21 | – | Não | ||
Não | – | – | – | Não | ||
Não | – | 20 | QT+RT | Não | ||
Sangramento | – | – | – | Não | ||
Não | – | 2 | RT | Não | ||
Não | – | 8 | – | Não | ||
Não | 3 | 5 | – | Não | ||
Não | 3 | 4 | – | Não | ||
Mendelsohn, 20139 | Nenhuma nos 18 casos | Nenhum | 0% GTM (SNE: SD) | 11 (mediana) | 10 QT+RT | Não |
Park, 201311 | Nenhuma | Sim (todos os casos: média 11,2 dias) | Sim (todos os casos; média 8,3 dias) | 13,5 (média) | Sim em 8 casos (RT 3 casos, QT+RDT 5 casos) | Não (média de 20,3 meses) |
Durmus, 20146 | Não | – | – | SD | – | SD |
Kayhan, 20147 | 2 pneumonias aspirativas | 1 caso | Sim (todos média 21,3 dias) | Sim (todos; média 8 dias) | 5 QT+RT | (média de 14,1 meses) |
Perez‐Mitchel, 201412 | Não | 3 (IOT) | 14 | 5 | – | Não (mediana de 30 meses) |
Razafindranaly, 20151 | 1 conversão | 24 casos (24%; média 8 dias; 1 caso dependente de TQT) | 64 casos (76%; média de 8 dias; 1 caso de GTM permanente) | 15,1 (média) | QT+RDT em 43 casos (51%) | SD |
16 sangramentos | ||||||
19 pneumonias aspirativas | ||||||
1 fístula faringo‐cutânea | ||||||
1 óbito |
–, procedimento não feito; AT, aritenoide; BL, base da língua; BV, banda ventricular; EC, esvaziamento cervical; EP, epiglote; GTM, gastrostomia; IOT, intubação orotraqueal; LS, pesquisa de linfonodo sentinela; PAE, prega ariepiglótica; PV, prega vocal; QT, quimioterapia; RT, radioterapia; SD, sem data; SP, seio piriforme; TQT, traqueostomia.
No presente caso, alguns aspectos chamaram atenção e posteriormente foram comprovados pelos demais estudos aqui resumidos: a paciente apresentou um pós‐operatório sem intercorrências, além de resultados oncológicos e funcionais bastante satisfatórios. A preocupação de demonstrar o seguimento tardio da paciente nos levou a retardar o relato do caso.
ConclusãoA apresentação do presente caso descreveu a viabilidade da laringectomia parcial supraglótica por acesso transoral robótico e demonstrou a boa evolução pós‐operatória e a reabilitação precoce apresentada pela paciente. Trata‐se, portanto, de um método seguro e de resultados oncológicos e funcionais bastante satisfatórios.
Conflitos de interesseOs autores declaram não haver conflitos de interesse.
Como citar este artigo: Cernea CR, Matos LL, de Carlucci Junior D, Leonhardt FD, Haddad L, Walder F. Transoral robotic supraglottic partial laryngectomy:report of the first Brazilian case. Braz J Otorhinolaryngol. 2018;84:660–64.
A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico‐Facial.