Objetivo: Caracterizar as alterações auditivas após o tratamento do câncer, segundo o tipo de tratamento identificando os fatores preditivos.
Método: Foram avaliados prospectivamente duzentos pacientes que tiveram cancer na infância. A idade média ao diagnóstico foi de 6 anos e à avaliação audiométrica de 21 anos de idade. O tratamento incluiu quimioterapia sem uso de derivados de platina ou radioterapia em cabeça e pescoço em 51 pacientes; quimioterapia com uso de cisplatina sem radioterapia em 64 pacientes; radioterapia em cabeça e pescoço sem cisplatina em 75 pacientes; e 10 pacientes receberam o tratamento combinado de radioterapia em cabeça e pescoço e quimioterapia com cisplatina. Os pacientes foram submetidos à avaliação audiológica incluindo audiometria tonal, audiometria vocal e imitanciometria.
Resultados: O tratamento envolvendo quimioterapia com cisplatina levou a 41,9% e 47,3% de perda auditiva na orelha direita e esquerda, respectivamente, apresentando risco 11,7 vezes maior de desenvolver perda auditiva na orelha direita e 17,6 vezes na orelha esquerda do que aqueles que não receberam cisplatina (p < 0,001 e p < 0,001; respectivamente). Crianças cujo diagnóstico do câncer ocorreu após os 6 anos de idade mostraram maior risco de apresentar perda auditiva do que crianças menores do que 6 anos de idade (p = 0,02).
Conclusão: A característica audiológica encontrada após tratamento oncológico foi perda auditiva sensorioneural bilateral simétrica. A quimioterapia com cisplatina mostrou ser fator de risco, enquanto a radioterapia em cabeça e pescoço não foi determinante para aquisição da perda auditiva.
Objective: To characterize the hearing loss after cancer treatment, according to the type of treatment, with identification of predictive factors.
Methods: Two hundred patients who had cancer in childhood were prospectively evaluated. The mean age at diagnosis was 6 years, and at the audiometric assessment, 21 years. The treatment of the participants included chemotherapy without using platinum derivatives or head and neck radiotherapy in 51 patients; chemotherapy using cisplatin without radiotherapy in 64 patients; head and neck radiotherapy without cisplatin in 75 patients; and a combined treatment of head and neck radiotherapy and chemotherapy with cisplatin in ten patients. Patients underwent audiological assessment, including pure tone audiometry, speech audiometry, and immittancemetry.
Results: The treatment involving chemotherapy with cisplatin caused 41.9% and 47.3% hearing loss in the right and left ear, respectively, with a 11.7-fold higher risk of hearing loss in the right ear and 17.6-fold higher in the left ear versus patients not treated with cisplatin (p < 0.001 and p < 0.001, respectively). Children whose cancer diagnosis occurred after the age of 6 have shown an increased risk of hearing loss vs. children whose diagnosis occurred under 6 years of age (p = 0.02).
Conclusion: The auditory feature found after the cancer treatment was a symmetrical bilateral sensorineural hearing loss. Chemotherapy with cisplatin proved to be a risk factor, while head and neck radiotherapy was not critical for the occurrence of hearing loss.
Introdução
Nas duas últimas décadas, a mortalidade do câncer da infância tem diminuído significativamente, porém, ainda representam a segunda causa de morte no Brasil.1 Atualmente, com os avanços no diagnóstico, melhora dos tratamentos e suporte clínico apropriado é possível um aumento na taxa de cura das neoplasias malignas na infância.2 Com o crescimento da taxa de sobreviventes, esses indivíduos são acompanhados por vários anos. Sendo assim, é possível observar o impacto dos efeitos tardios relacionados ao tratamento, na qualidade de vida destes adultos jovens.
As diferentes modalidades de tratamento (cirurgia, radioterapia e quimioterapia) e a combinação entre elas contribuem para melhorar os resultados, tanto no controle da doença como na melhora das taxas de sobrevida.3
Dentre as drogas ototóxicas, a cisplatina é um antineoplásico com atividade antitumoral comprovada, mas que pode apresentar como efeito colateral a ototoxicidade, sendo descrita como a dosagem de risco 400 mg/m.2,4,5
A radioterapia em cabeça e pescoço concomitante ao uso de CDDP aumenta a probabilidade de perda auditiva severa.6,7 Contudo, quando utilizada isolada e em doses inferiores de 50 a 60 Gy, os pacientes não apresentam perda auditiva clinicamente significante.8,9
A ototoxicidade é o efeito conhecido pela lesão do órgão periférico da audição, sendo caracterizada quando da ocorrência de perda auditiva neurossensorial descendente bilateral e irreversível.10,11 A incidência de perda auditiva é bastante variada, devido ao modo da administração da droga, localização do tumor, função renal, idade do paciente, medicamentos associados, irradiação prévia, preexistência de perda auditiva, dose cumulativa, dose total do tratamento ou susceptibilidade individual.12,13
O presente trabalho foi realizado com objetivo de caracterizar o perfil audiológico dos pacientes que tiveram câncer na infância, estando fora de tratamento oncológico há pelo menos oito anos, relacionar as alterações auditivas encontradas segundo o tipo de tratamento e idade, e identificar fatores preditivos de perda auditiva.
Método
No período de 2000 a 2004, foram avaliados prospectivamente pacientes que tiveram câncer na infância, tratados no período de 1961-1996, e que encontravam-se fora de tratamento oncológico, no mínimo, há oito anos, em acompanhamento no grupo de estudos pediátricos sobre os efeitos tardios do tratamento oncológico. Foram excluídos pacientes que apresentavam passado otológico ou que tinham história de cirurgia que envolvesse o sistema auditivo. O estudo foi aprovado pela comissão de ética em pesquisa da instituição sob protocolo 549/03. Os pacientes elegíveis, ou seus responsáveis legais, foram consultados sobre a possibilidade de participar, e foram convidados a assinar o termo de consentimento livre e esclarecido.
Os pacientes foram submetidos a anamnese no ambulatório de Pediatria com o objetivo de investigar a presença de queixa auditiva e encaminhados para avaliação auditiva no serviço de Audiologia, independentemente da existência ou não da queixa. A meatoscopia foi realizada antes do exame e, caso o paciente apresentasse cerumem ou qualquer suspeita e/ou obstrução que impedisse a realização do teste, era encaminhado para o otorrinolaringologista antes da avaliação.
Para avaliação da audição foram usados testes de quantificação da audição (audiometria tonal limiar e audiometria vocal) e testes de avaliação do sistema tímpano-ossicular (imitanciometria). Para tanto foram usados audiômetro Madsen Orbiter 922 e imitanciômetro Madsen Zodiac 901.
A dose de CDDP recebida pelos pacientes foi calculada e ajustada para superfície corpórea de 1 m2, pelo oncologista pediátrico. As fichas dos pacientes que realizaram radioterapia em região de cabeça e pescoço foram analisadas segundo o lado em que foi realizada a radioterapia e inclusão do sistema auditivo no campo de radiação. A dose total e a dose estimada de radiação que atingia o sistema auditivo foram calculadas por orelha, por um radioterapeuta e com base na ficha de planejamento. A variável radioterapia que atingiu o sistema auditivo foi categorizada em: sem Rxt, Rxt ≤ 4000 cGy e Rxt > 4000 cGy.9,14
Os pacientes foram estudados de acordo com o tipo de tratamento realizado, baseado no uso de quimioterapia com cisplatina (CDDP) ou radioterapia na região de cabeça e pescoço.
O critério de perda auditiva utilizado foi baseado no Bureau International d’Audio Phonologie – BIAP,15 que considera perda auditiva os limiares tonais maiores que 20 dB nas frequências de 0,5 a 4 kHz.
Análise estatística
Para identificação dos fatores preditivos de perda auditiva foi criada uma variável dicotômica (sim/não), sendo considerada perda auditiva somente alterações nas frequências de 0,25 a 4 kHz. A perda auditiva em 6 e 8 kHz não foi incluída na análise estatística, devido ao pequeno prejuízo que essas perdas causam na vida diária destes indivíduos.16,17
A variável idade ao diagnóstico foi categorizada em ≤ 6 anos e > 6 anos, baseada na mediana dos valores encontrados.
Foram calculadas as medidas de tendência central e dispersão para as variáveis quantitativas, assim como frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas. Para verificar a associação entre as variáveis independentes e a perda auditiva, foi empregado o teste de associação do Qui-quadrado ou teste exato de Fisher (quando pelo menos uma das frequências esperadas foi menor do que 5). Para identificar os fatores de risco independentes para a ocorrência de perda auditiva, foi utilizada a regressão logística, com cálculo das odds ratios brutas e ajustadas e seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Para todos os testes estatísticos, foi estabelecido um erro a = 5%, isto é, os resultados foram considerados estatisticamente significativos quando p < 0,05.
Resultados
A amostra selecionada contou com 200 pacientes tratados por câncer na infância, que se encontravam fora de tratamento na época do estudo. A tabela 1 mostra a distribuição segundo a neoplasia primária e o tipo de tratamento empregado. Nesta casuística, 51 não realizaram radioterapia em região de cabeça e pescoço e nem usaram CDDP; 64 receberam quimioterapia com CDDP e não realizaram radioterapia em região de cabeça e pescoço; 75 foram submetidos a tratamento radioterápico em região de cabeça e pescoço sem quimioterapia com CDDP; e 10 pacientes submetidos a radioterapia em região de cabeça e pescoço e quimioterapia com CDDP. As crianças tratadas por radioterapia (Rxt) sem cisplatina (CDDP) tinham diagnóstico, em sua maioria, de leucemia ou de retinoblastoma, e foram tratadas com radiação de megavoltagem. Nos pacientes que receberam CDDP+Rxt, a dosagem total de radioterapia foi maior (4214,0 ± 678,9 cGy) do que nos pacientes que receberam somente Rxt (2996,8 ± 1427,8 cGy) (tabela 2).
A tabela 3 revela que 104 (52%) pacientes da amostra eram do sexo masculino e 96 (48%) do sexo feminino.
Caracterização da perda auditiva
Os pacientes que receberam CDDP e CDDP+Rxt apresentaram perda auditiva neurossensorial bilateral simétrica nas frequências de 4, 6 e 8 kHz, e não foi observada perda auditiva nos pacientes oncológicos que não receberam tratamento de risco para a audição ou Rxt em cabeça e pescoço como tratamento isolado (fig. 1).
Figura 1. Configuração audiométrica média dos limiares auditivos segundo o tipo de tratamento. CDDP, cisdiamenodicloroplatina; Rxt, radioterapia; OD, orelha direita; OE, orelha esqueda.
Identificação dos fatores preditivos de perda auditiva
Observamos diferença estatisticamente significante ao comparar os três grupos sem Rxt, e com Rxt até 4.000 ou acima de 4.000 cGy, tanto para o lado direito (p = 0,025), quanto para o lado esquerdo (p = 0,020). Entretanto, não podemos afirmar que o fator Rxt tenha influenciado na perda auditiva, porque ao comparar a porcentagem de perda no grupo que não recebeu Rxt e o grupo que recebeu mais que 4000 cGy, estes valores são semelhantes, levando a crer que a significância estatística se deve à baixa porcentagem de perda no grupo que recebeu menos de 4.000 cGy, diferindo assim dos dois outros grupos, conforme observado na tabela 3.
Análise múltipla dos fatores preditivos de perda auditiva
Na análise múltipla, considerando os pacientes que não usaram CDDP como controles, o uso de CDDP e a idade ao diagnóstico foram fatores preditivos de perda auditiva.
As crianças cujo tratamento incluiu o uso de CDDP apresentaram 11,7 vezes maior risco para perda auditiva na orelha direita e 17,6 na orelha esquerda (p < 0,001 para ambas as orelhas) do que as crianças que não usaram CDDP. A idade ao diagnóstico > 6 anos apresentou 2,7 vezes maior risco para a perda auditiva na orelha direita (p = 0,02), quando comparada com crianças com idade ≤ 6 anos (tabela 4).
Na análise múltipla, a dose de radioterapia não foi fator de risco para perda auditiva quando utilizados como controle os pacientes que não receberam Rxt.
Discussão
Nosso estudo teve como objetivo relacionar as alterações auditivas encontradas segundo o tipo de tratamento e idade, e identificar fatores preditivos de perda auditiva em pacientes que tiveram câncer na infância e encontravam-se fora de tratamento oncológico. Para definirmos qual o tratamento de risco para a audição, foi necessária a separação entre as orelhas, considerando que a incidência da irradiação variou com o local do tumor.
Encontramos um predomínio de exames com limiares dentro dos padrões de normalidade para os pacientes que não realizaram tratamento com CDDP, enquanto que os pacientes que fizeram uso de CDDP ou CDDP+Rxt mostraram um predomínio de perda auditiva neurossensorial simétrica bilateral nas frequências de 4, 6 e 8 kHz.11,12,18-22 É possível inferirmos que a perda auditiva está relacionada ao tipo do tratamento oncológico, até mesmo em indivíduos avaliados muitos anos após o término do tratamento, uma vez que o grupo cujo tratamento não envolveu CDDP ou RxT, nas mesmas condições, não apresentou perda auditiva.
Paulino et al. (2000),23 Johannesen et al. (2002),24 Low et al. (2006)8 e Dell’Aringa et al. (2010)9 relataram que dose entre 4.000 e 6.000 cGy foram dosagens de risco para audição, e sugeriram o acompanhamento audiológico. O tratamento de Rxt em tumores de cabeça e pescoço pode causar alterações de orelha média como otite externa, otite média serosa,25 necrose do conduto auditivo externo e osteorradionecrose do osso temporal.14,24,26 Em nossa casuística, as leucemias foram predominantes no grupo de pacientes que fizeram Rxt sem CDDP não apresentando perdas auditivas, estando de acordo com os resultados relatados no estudo de Thibadoux et al. (1980).27 De fato, a dosagem de radioterapia que atingiu a orelha direita (2.292,0 ± 1.744,2 cGy) e a orelha esquerda (1.524,0 ± 1.692,7 cGy) foi de baixo risco nos pacientes que realizaram Rxt. A tabela 3 mostra que 92,9% dos pacientes que receberam doses de radioterapia inferiores a 4.000 cGy não apresentaram perda auditiva, justificando a associação significante. Na análise múltipla dos fatores preditivos de perda auditiva, a Rxt não foi fator de risco para audição (tabela 4).
Os pacientes tratados com CDDP e CDDP+Rxt receberam dosagens de CDDP elevadas, superiores à considerada de risco para a perda auditiva (≥ 400 mg/m2). Nesta casuística, a dosagem média de CDDP nos pacientes que fizeram quimioterapia foi de 650 mg/m2, e nos indivíduos que receberam CDDP+Rxt foi de 670 mg/m2. Li et al. (2004)22 apontaram a relação entre dosagem de CDDP e perda auditiva, sendo que dosagens iguais ou superiores a 400mg/m2 apresentaram maior risco para perda auditiva. Os estudos que utilizaram as frequências convencionais (0,25-8 kHz) para avaliação auditiva revelam variação em relação à incidência de perdas auditivas entre 20 e 70%.28 Esta variação acontece por diversos fatores, entre eles: frequências avaliadas, faixa etária dos indivíduos, dosagem de CDDP, esquema de administração da droga e critério de perda auditiva adotado. Em nosso estudo, encontramos uma prevalência de 41,9% para OD e 47,3% para OE, com base no critério de perda auditiva nas frequências de 0,25 a 4 kHz.
Li et al. (2004)22 destacaram maior risco para perda auditiva em crianças menores de 5 anos. Brock et al. (1992),18 Simon (2002)29 e Gunn et al. (2015)30 não encontraram uma relação estatisticamente significante entre o uso de CDDP e idade.
Em nossa amostra, encontramos que idade maior que 6 anos ao diagnóstico do câncer apresentou 2,7 vezes maior risco para perda auditiva (p = 0,02), quando comparada com crianças com idade ≤ 6 anos ao diagnóstico somente para orelha direita e com tendência para orelha esquerda (OR = 2,1; p = 0,08). Esse fato pode dever-se ao fato de a nossa casuística de pacientes que apresentaram perda auditiva estar concentrada em diagnósticos de osteosarcoma, mais frequentes na adolescência (tabela 1).
Em nosso estudo, não houve relação estatisticamente significante para sexo; entretanto, Yancey et al. (2012)28 referiram que o sexo e a dose cumulativa são os marcadores clínicos mais importantes de ototoxicidade. A gravidade da ototoxicidade pode estar inversamente relacionada à idade na época do tratamento, sendo que as crianças mais jovens teriam graus maiores de perda auditiva após o tratamento.28 Ondrey et al. (2000)31 relataram que a combinação dos dois tratamentos (Rxt + QT) será o melhor tratamento oncológico no futuro, porém, ambos apresentam efeitos ototóxicos.
No presente estudo, a amostra de pacientes que realizaram tratamento combinado (Rxt + CDDP) foi reduzida (n = 10), porém encontramos o mesmo grau e tipo de perda auditiva verificada nos pacientes que realizaram quimioterapia com CDDP sem Rxt, mostrando que a Rxt, neste estudo, não foi fator de risco para perda auditiva, e sim a CDDP.
Considerando o impacto de perdas auditivas, ainda que subclínicas, no desenvolvimento linguístico, pedagógico e cognitivo das crianças tratadas por câncer na infância,32 e que ainda não há estudos que comprovem efeitos otoprotetores significantes,33 a monitorização se impõe como a ferramenta mais importante no acompanhamento desses pacientes.34
Conclusão
A característica da perda auditiva identificada nos pacientes oncológicos fora de tratamento foi senssorioneural, bilateral e simétrica, acometendo eminentemente as frequências de 4, 6 e 8 kHz.
O tratamento quimioterápico com cisplatina mostrou ser fator de risco para aquisição da perda auditiva, enquanto a radioterapia em cabeça e pescoço não foi determinante.
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
Agradecimento
Os autores agradecem à dra. Karina B. Ribeiro pelo valioso auxílio na análise dos dados.
Recebido em 15 de junho de 2015;
aceito em 9 de novembro de 2015
* Autor para correspondência.
E-mail: phpliberman@accamargo.org.br (P.H.Liberman).
☆ Como citar este artigo: Liberman PH, Goffi-Gomez MV, Schultz C, Novaes PE, Lopes LF. Audiological profile of patients treated for childhood cancer. Braz J Otorhinolaryngol. 2016;82:623-9.
☆ ☆ Estudo realizado no A.C. Camargo Cancer Center.
DOI se refere ao artigo: http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.11.021